A presença de um barco em construção no Museu dos Rios e das Artes Marítimas pretende elucidar sobre o trabalho num estaleiro a céu aberto onde as embarcações eram construídas e reparadas. Imagem: mediotejo.net

Durante séculos e até meados do século XX, Constância foi um importante porto fluvial que vivia a azáfama de um tráfego fluvial de mercadorias entre os seus rios, as grandes vias de comunicação e do comércio de então, com a maioria tendo como destino a capital, Lisboa, através do chamado Mar da Palha (o estuário do rio Tejo). Terra que viveu e se desenvolveu das águas do rio, na vila as profissões de pescador, calafate e barqueiro eram algo comum, ao contrário do que acontece hoje, em que as principais vias de comunicação  passaram a ser as estradas, deixando as embarcações encostadas às margens dos rios.

Mas há quem se esforce por manter presentes as vivências e tradições do passado, e é aqui que entra o Museu dos Rios e das Artes Marítimas, numa missão de perpetuar a ligação entre Constância e os rios desde 1998, há 24 anos.

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“O museu tem uma importância enorme como espaço cultural, tanto na preservação do passado como do presente e para o futuro. A função deste museu em particular é tentar transmitir a história de como foi Constância até meados do século XX. Constância viveu dos rios e é essa história que está aqui em cada peça e que temos que preservar e transmitir, e especialmente quem é daqui tem que saber isto, porque isto faz parte da sua identidade”, defende Anabela Cardoso, técnica superior na Câmara Municipal de Constância e responsável do museu há mais de duas décadas.

ÁUDIO | Anabela Cardoso recorda importância de Constância na época áurea do tráfego fluvial

Discretamente plantado à beira da Nacional 3, ao lado da Câmara Municipal de Constância, desde sempre que a população sabia que ali seria a casa do museu. “Isto era um espaço que tinha uma adega, um lagar, tinha também um estábulo onde estavam os animais, uma zona com palha, era um espaço que tinha várias funções”, recorda-nos Anabela.

À entrada do Museu dos Rios e das Artes Marítimas deparamo-nos com imagens e documentação sobre a importância do rio em Constância na altura em que era um relevante porto fluvial. Imagem: mediotejo.net

“Este edifício era conhecido por ‘Casa Amarela’. E sempre houve a ideia de que aqui iria ser um museu. Aqui é que seria o futuro museu! Tanto que quando vim para a Câmara, havia um lote de peças que estavam na cave e que eram já para o futuro museu, mas isto ainda não era nada”, conta-nos.

Numa altura em que as atividades fluviais estavam em declínio, o Município aprontou-se a recolher peças e até a adquirir outras, não só ligadas aos rios mas também à agricultura, uma vez que a ideia de criar um museu era ainda só uma intenção cuja temática não estava totalmente definida. Acabou por ser atribuído o nome de Museu dos Rios e Artes Marítimas e, fazendo jus a tal, foram escolhidas para exposição as peças fluviais.

Da pesca ao transporte fluvial, são diversos os instrumentos usados outrora por quem vivia dos rios que estão expostos no museu. Imagem: mediotejo.net

“Também houve muitas pessoas da comunidade que tinham peças guardadas e deram, houve muitas ofertas. Um antigo marítimo, quando a atividade terminou, tinha como passatempo fazer embarcações e ainda foi chamado para dar na altura dois cursos para fazer miniaturas que tinham como objetivo vir para o museu”, recupera Anabela Cardoso.

Pós-graduada em património cultural imaterial, sublinha ao mediotejo.net que além de preservar os objetos é também preciso guardar e partilhar as memórias e as histórias. Para isso, vale o conjunto de documentação de etnografia fluvial composto por diversos documentos e fotografias que ainda hoje chegam às mãos do museu, a maior parte doadas por aqueles que ainda pertenceram aos tempos áureos dos rios e que deles dependiam para garantir a sobrevivência das famílias, como os pescadores, calafates e marítimos.

Todo este mundo de recordações cabe num museu que Anabela adjetiva de “pequenino” mas próximo da comunidade. “É um museu local em que a relação com a comunidade é muito importante. As pessoas gostam deste espaço e compreendem, apesar de que se for perguntar a alguém ‘mas já lá foi’ se calhar dizem que não mas compreendem que é importante, porque algumas até deram para aqui peças. A proximidade que existe entre as pessoas e o museu é muito boa e tento sempre que isso seja enriquecido e valorizado”, admite.

Anabela Cardoso é técnica superior na Câmara Municipal de Constância e está à frente do Museu dos Rios e das Artes Marítimas. Imagem: mediotejo.net

Com cerca de 1300 visitantes em 2019, o aparecimento da pandemia de Covid-19 veio baixar esse número em mais de metade, para os 437 visitantes, em 2020. Já em 2021, a recuperação dá conta de 586 visitantes entre abril e dezembro, e Anabela Cardoso admite o aparecimento de “um público diferenciado de pai, mãe e filho” que “começaram a vir aos pouquinhos”. A par disso, as escolas são ainda o maior público recebido em todas as alturas do ano, sendo desenvolvidos ATL (atividades de tempos livres) especificamente dirigidos às crianças com o propósito de manter vivas as a tradições, não só ligadas ao rio mas também outras, como a de fazer o pão.

Mas o Museu dos Rios e das Artes Marítimas quer navegar até aos quatro cantos do mundo e para isso embarcou na viagem das redes sociais. É através do Facebook que desde finais de 2019 é feita a divulgação das histórias e memórias da vila, tendo em janeiro de 2021 arrancado a iniciativa “Peça do Mês” (mensalmente divulgada pelo mediotejo.net) que dá a conhecer os diversos elementos patrimoniais da vila poema ligados aos rios e às artes marítimas e não só.

“Nós às vezes não nos apercebemos muito do impacto que tem [esta divulgação]. Eu às vezes sei por comentários. Chega a muito lado e isto das redes sociais veio com a pandemia porque vi que o museu poderia morrer, fechar-se sobre si mesmo. Há uma necessidade de continuar a dizer que o museu existe, que tem um objetivo e que é extremamente importante”, defende Anabela Cardoso, que prefere no entanto que as pessoas venham presencialmente ao museu visitar as incontáveis peças que, certamente, rondam umas quantas centenas.

Exemplos de utensílios usados na atividade fluvial: cadernais, sapatilhos, patesca, moitão. Imagem: mediotejo.net

Mas há muitas outras que esperam ainda pelo seu lugar de destaque em exposição. E para ser cumprido o desejo de exaltar ainda mais a eterna ligação da vila às águas do rio, paira já pelas margens do Zêzere e do Tejo a ideia embrionária de uma nova casa para o museu no espaço onde hoje se localizam dois edifícios em ruínas junto ao Jardim-Horto de Camões (a intenção desta nova casa foi primeiramente expressa pelo Município em 2021, que tem a expectativa de aparecimento de financiamento comunitário).

“Faz muita falta! O que temos aqui é uma só sala de exposições, um pequenino gabinete e na última sala é onde fazemos pequenos trabalhos. Mas falta aqui muita coisa: falta um espaço onde receber as pessoas, um espaço amplo onde pudesse até fazer uma exposição temporária, falta-nos uma sala para exposições para que aquelas peças que temos guardadas poderem sair, em exposições temáticas”, enumera a responsável do museu que admite a vontade de poder ter em exposição barcos emblemáticos e que estão já a desaparecer, como o catrafuz.

ÁUDIO | Anabela Cardoso refere necessidade de uma nova casa para o museu

Com quatro temáticas numa sala única – uma área dedicada à pesca, outra ao transporte fluvial, uma terceira que exalta a Nossa Senhora da Boa Viagem e ainda uma parte dedicada à construção naval – pedimos a Anabela Cardoso que escolhesse uma peça de cada secção para nos contar a sua breve história.

Área dedicada à Pesca no Museu dos Rios e das Artes Marítimas. Imagem: mediotejo.net

Começamos pela área da pesca e aqui encontramos exemplares de armadilhas usadas pelos pescadores para apanhar peixes. “Temos aqui um covo, uma peça para apanhar o peixe feita em vime que tem uma portinha em cortiça, que se colocava no fundo do rio ao anoitecer”, conta-nos a responsável do museu.

“Geralmente, colocava-se sempre lá dentro um engodo para o peixe sentir na água esse alimento, obrigava-o a entrar e depois, como tem umas verguinhas pequenas, ele não conseguia encontrar a saída”, acrescenta.

Já na área dedicada ao transporte fluvial, o destaque vai para os maiores barcos que navegavam no rio Tejo: os varinos. “Tinham fundo chato, geralmente tinham duas, três velas e a função deles era transportar mercadorias Tejo acima Tejo abaixo. Uma das mercadorias que eles transportavam era o vinho, transportado em grandes cascos”.

Miniaturas de varinos e de lanchas salva-vidas estão presentes na área dedicada ao transporte fluvial. Imagem: mediotejo.net

Mais à frente encontramos uma pequena esquina dedicada à padroeira dos marítimos, a Nossa Senhora da Boa Viagem. Acompanhada, sempre, por dois anjinhos. “A procissão da Nossa Senhora da Boa Viagem era extremamente importante para as pessoas que trabalhavam no rio, especialmente, nos varinos. A tripulação dos varinos, estivesse onde estivesse nesse período da Páscoa, fazia questão de estar aqui na segunda-feira após a Páscoa para receber a bênção e também aproveitavam para agradecer a sorte que tiveram no ano anterior”, recorda Anabela Cardoso.

ÁUDIO | Anabela Cardoso fala sobre devoção à Nossa Srª da Boa Viagem

Por fim, chegamos ao fim do museu e deparamo-nos com um imponente barco em fase de construção. Estamos na área da construção naval e aqui podemos ter uma noção do que seria um estaleiro a céu aberto onde as embarcações eram construídas e reparadas por altura do verão.

“A embarcação estava no areal do rio [a ser construída ou reparada]. Era colocada a estopa, feita a calafetagem, depois era briar o barco, colocava-se uma mistura de resina com alcatrão e depois com uma espécie de esfregona passava-se pelo barco todo e impermeabilizava-se o barco. (…) Depois do barco ficar negro, pintava-se então com a cor que era habitual na nossa zona, os verdes, os pretos, os brancos, e, claro, o nome e a matrícula”, explana a responsável do museu.

Barco construído, armadilhas prontas e com a bênção da Nossa Senhora, está na hora de se fazer ao rio para embarcar numa viagem rumo às memórias e tradições da identidade constanciense. 

Descubra um pouco mais sobre o Museu dos Rios e das Artes Marítimas nesta fotogaleria:

Localização: Estrada Nacional N.º 3, 2250-028 Constância

Horário: 14h00 às 17h30 

Mais informações: 249 730 053 / museu.rios@cm-constancia.pt / Facebook do Museu

Ana Rita Cristóvão

Abrantina com uma costela maçaense, rumou a Lisboa para se formar em Jornalismo. Foi aí que descobriu a rádio e a magia de contar histórias ao ouvido. Acredita que com mais compreensão, abraços e chocolate o mundo seria um lugar mais feliz.

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