António Mário Santos dedicou vários anos à investigação de documentos da Inquisição na Torre do Tombo, em Lisboa, e encontrou cerca de 250 processos de torrejanos. Foto: mediotejo.net

É um trabalho minucioso, que requer paciência e persistência, além de um profundo domínio da arte – quase como um ourives a criar filigrana. Estudar os frágeis documentos do século XVI, entre os que se salvaram do terramoto de 1755 e chegaram aos nossos dias, implica procurar nas “entrelinhas” pistas que indiquem um caminho na escuridão de que é feita a ignorância, até encontrar a luz.

É também um trabalho de amor, sobretudo quando feito sem esperar qualquer recompensa material, como é o caso dos estudos que o professor António Mário Lopes dos Santos tem realizado ao longo de toda a sua vida sobre a história de Torres Novas.

Aos 81 anos, e depois de mais de 20 anos de investigação, é com natural satisfação que vê finalmente publicada a história da comunidade judaica de Torres Novas, praticamente ignorada até aos dias de hoje, na coleção “Estudos e Documentos”, editada pelo município torrejano.

O livro “Os judeus em Torres Novas – A repressão inquisitorial no concelho de Torres Novas (séc. XVI-XVII)”, foi apresentado no sábado, 4 de novembro, na Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes, e permitiu colocar o concelho no “mapa” da presença judaica em Portugal, comprovando inclusive a importância que esta comunidade tinha há 500 anos, no contexto do comércio nacional, como ponto de confluência entre as Beiras, o Alentejo e Lisboa.

Na região, a comunidade judaica de maior importância era a de Santarém, mas Torres Novas rivalizava num segundo lugar com Tomar, seguindo-se depois Ourém e Abrantes.

Tal como sucedia um pouco por todo o país, no início do séc. XVI os judeus dominavam importantes áreas da economia, fazendo a cobrança de impostos, a escrita notarial, o comércio de ouro e prata, bem como de armamento, couros, lanifícios e outras matérias-primas. A maioria dos ofícios era também assegurada por judeus (ferreiros, albardadeiros, tecelões), que tipicamente tinham as suas lojas na parte térrea da casa que habitavam.

No início do século XVI, um terço da população de Torres Novas era judaica: 116 famílias, numa comunidade de 464 a 512  judeus

Nesta época, a comunidade judaica constituía cerca de um terço da população nas cidades mais importantes do país, números que António Mário Santos encontra também a nível local. Um dos registos mais antigos, de 1524, permite saber que Torres Novas tinha, no início do séc. XVI, uma população concelhia entre os 4.592 e 6.516 habitantes. Na zona da vila (hoje centro histórico), viviam entre 1.404 e 1579 habitantes, entre os quais 116 famílias judaicas, numa comunidade de 464 a 512  pessoas.

Não deixa der ser curioso que grande parte dos documentos que permitem hoje revelar a história desta comunidade foram escritos pelo punho desses mesmos habitantes, pois eram os judeus – e depois os “cristãos-novos” – que se encarregavam da maioria dos registos notariais naquela época.

António Mário Santos encontrou no tombo das Capelas de Torres Novas referências aos primeiros judeus convertidos no concelho, a quem, depois da ordem de expulsão ou conversão forçada, a legislação manuelina concedeu um tempo de espera de vinte anos para a sua integração na sociedade cristã.

Num documento da confraria de Santa Maria dos Anjos, pode ler-se: “humas casas e logea em esta villa de torres nouas homde soya ser a Judaria. (…) […] E do sull com casas da comfraria dos lavradores que ora traz Gil gomez. (…) E outras casas logo hy que partem do norte com Rua pubrica que foy Judaria e do pouemte com graniell Garcia nouo cristãao. E do leuamte com casa delle simam de brito E Camara da dicta confraria que asy traz o dito[…] e do sul parte com casas de gill gomez[…] Eram duas casas térreas a diamteira he de comprido cimquo varas (…) E a dicta logea staa na Rua direita E parte do norte com casas delle simam de brito e do pouemte  com a camara da comfraria que traz elle dicto simam de brito E do leuamte com Rua direita E do sul com casas da comfraria dos lavradores que traz o dicto Gil Gomez“.

Além das referências à Judiaria e à localização de casas na Rua Direita, cuja anterior propriedade era de novos cristãos ou da confraria dos lavradores (que, por via do comércio, os judeus dominavam), surgem diversas referências a uma “câmara” da confraria – o que, na interpretação de António Mário Santos, dirá respeito à sinagoga desta comunidade torrejana.

“Continua a ser um mistério o local exacto onde se situaria a sinagoga judaica”, frisa o historiador, “mas a documentação encontrada permite sustentar a hipótese de que ficaria na Rua Direita, ou na sua proximidade”.

Com a ordem de expulsão, “as judiarias são eliminadas, transformadas em vilas novas, como o caso de Torres Novas, ou ruas novas, se eram só um arruamento e pouco mais, os cemitérios em rocios ou pastos, os livros confiscados e proibidos, a língua, o ensino e o culto, eliminados da vida pública”, explica António Mário Santos.

“Não existe documentação municipal ora conhecida, que nos permita uma visão mais completa sobre estes primeiros tempos convulsos, que recaíram sobre a comunidade judaica torrejana, e qual a acção das elites locais e do povo, que, desde 27 de maio de 1500, passara da Casa das Rainhas para um novo donatário, D. Jorge, duque de Coimbra, filho bastardo de D. João II, mestre das ordens de Avis e de Santiago”, refere o historiador.

“Os tombos das confrarias, registadas em 1502, são a única documentação existente para esses tempos, cuja análise permite uma visão dessas elites, fidalgos, cavaleiros, nobreza local, escrivães, lavradores, mesteres, que são foreiros dos bens do concelho, das confrarias, da extenso património fundiário de João Rodrigues Pimentel. Também aí encontramos os primeiros cristãos-novos, dispersos, como foreiros, pelas diversas confrarias.”

“A expulsão dos Judeus”, obra de Roque Gameiro

Os primeiros registos sobre a acção da Inquisição em Torres Novas surgem depois de 1550, nos livros de Denúncias, arquivados na Torre do Tombo, em Lisboa. Ali, António Mário Santos encontrou as histórias de cerca de 250 torrejanos, cujos processos reconstitui no livro que agora publica.

Histórias como a de Joana Lopes, das Lapas, que ousou dizer que, se “Nossa Senhora parira, não podia ser virgem”. Ou de Gomes Rodrigues, denunciando a sua mãe à Inquisição, “mulher que foi de Joaquim Lopes, X. N., mercador, a quem viu há dois anos cozer um galo, com penas e tudo, só em azeite, dizendo-lhe ela que o fazia por uma devoção que tinha”.

Muitos acabavam denunciados pelos seus rituais da alimentação, refere António Mário Santos, como “não comer coelho, porco, congro, safio, peixe sem escama”, ou os hábitos “de vestir roupas lavadas aos sábados, de varrer a casa ao contrário, de fora para dentro, e de acender luminárias na véspera do Sábado”.

O historiador António Mário Santos começou a investigar a presença judaica em Torres Novas no ano 2000. Foto: mediotejo.net

O papel da mulher na preservação da tradição judaica tornou-se “evidente” para António Mário Santos, ao longo da sua investigação, e foi um dos factos que mais o surpreendeu. “É ela que transmite, regra geral, aos filhos, a procedência judaica. Também é sobre ela que a Inquisição mais se encarniça”, nota.

Muitas acabam presas, e condenadas à morte. António Mário Santos encontrou 130 processos da Inquisição relativos a mulheres de Torres Novas. “Os inquisidores sabem como, pelo terror do tormento, conseguem quebrar a dignidade das reclusas, colocadas ante situações deprimentes, em cárceres exíguos, sem ninguém conhecido nas suas celas, em condições degradantes, com tempos longos de prisão, sem serem ouvidas, e expostas a repressões psíquicas degradantes, para as obrigarem à delação das famílias, irmãos, sobrinhos, maridos, filhos, pais, antepassados”.

POPULAÇÃO JUDAICA DA COMARCA DE SANTARÉM EM 1630

 LOCALIDADE   FAMÍLIAS
SANTARÉM71
SALVATERRA DE MAGOS2
PERNES E ALCANEDE2
MONTARGIL3
CHAMUSCA7
MUGE1
AZAMBUJA9
GOLEGÃ4
TORRES NOVAS50
TOTAL149

O pior período decorre entre 1630 e 1640. “Com a pureza de sangue, o ódio e a inveja dos cristãos-velhos, assolados por uma igreja defensora dos seus privilégios e bens dominiais, Torres Novas perdeu, em 10 anos, parte significativa da sua população mais ativa e dinâmica”, revela António Mários Santos.

No período filipino, fortemente perseguidos, os judeus que não acabaram presos ou mortos fugiram para fora do reino – nomeadamente para o nordeste brasileiro e para Amesterdão, onde a comunidade sefardita prosperava, através do comércio com a Companhia das Índias.

Fechou-se nessa altura em Torres Novas uma pesada porta, trancada a sete chaves, procurando remeter ao esquecimento episódios menos felizes do passado. A importância da comunidade judaica no concelho, bem no contexto do comércio nacional, permaneceu obscurecida, não sendo mais que uma nota de rodapé no livro da nossa História – até hoje.

Sou diretora do jornal mediotejo.net, diretora editorial da Médio Tejo Edições e da chancela de livros Perspectiva. Sou jornalista profissional desde 1995 e tenho a felicidade de ter corrido mundo a fazer o que mais gosto, testemunhando momentos cruciais da história mundial. Fui grande-repórter da revista Visão e algumas da reportagens que escrevi foram premiadas a nível nacional e internacional. Mas a maior recompensa desta profissão será sempre a promessa contida em cada texto: a possibilidade de questionar, inquietar, surpreender, emocionar e, quem sabe, fazer a diferença. Cresci no Tramagal, terra onde aprendi as primeiras letras e os valores da fraternidade e da liberdade. Mantenho-me apaixonada pelo processo de descoberta, investigação e escrita de uma boa história. Gosto de plantar árvores e flores, sou mãe a dobrar e escrevi quatro livros.

Apaixonada pelo mundo do jornalismo, é licenciada em Comunicação Social pelo Instituto Politécnico de Tomar / Escola Superior de Tecnologia de Abrantes. Acredita que "para chegar onde a maioria não chega, é necessário fazer o que a maioria não faz".

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4 Comentários

  1. Gostei do que acabo de ler desconheci totalmente de tal acontecimentos parabéns a todos que me deram um pouco da nossa história.

  2. Investigação sobre um tema muito importante da nossa História, pois a expulsão dos Judeus, impactou negativamente de modo muito profundo Portugal, no plano social, científico/conhecimento e muito particularmente no plano económico.

  3. Boa tarde eu sou de Torres Novas e desconhecia está história de judeus secalhar ainda sou descendente de judeus não sei

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