A vetusta fonte foi buscar o seu nome de batismo à localidade da Moita, cujo topónimo vem já referenciado nos Tombos de 1504-1510, da Ordem de Cristo.1 A fonte é tão idosa que se ignora a sua idade. Vale a pena, portanto, olhá-la com fantasia e lembrar o seu passado de séculos, reavivando o velho provérbio popular: “Só percebemos o valor da água depois que a fonte seca.”
Hoje, o local onde se situa é domínio administrativo da freguesia de Vila Nova da Barquinha. Mas nem sempre foi assim …
Importa lembrar que a posse da fonte provocou muitos litígios. Mormente com a então freguesia da Moita do Norte. Sabemos que pelo silêncio da noite, ora os fregueses da Moita, ora os da Barquinha mudavam os marcos que assinalavam a estrema entre as duas freguesias para comprovarem a quem a fonte pertencia! Tal era a peso da fonte para a vida social e local!
Foi um dos primordiais lugares comunitários onde a gente do povo lavava, cavaqueava e ia captar a valiosa água para matar a sede ou para praticar atos de comércio. Um local relevante nos meados do século XIX e meados do de XX, pois o atributo do seu precioso líquido correu fama por vilas e cidades deste país.
Recorda-se que a sua localização, na parte alta da vila, permitiu que, por gravidade, a água se deslocasse, suavemente, pela encosta abaixo. Assentando em técnicas ancestrais, o líquido percorria uma longa distância, quase sempre por caleiras instaladas nos topos dos muros ou por canais contruídos por mão humana. A caleira, feita de telha portuguesa, ali para os lados das olarias da Atalaia e da Moita, não ficava atrás das técnicas hoje mais evoluídas.
Sabemos que em 1837: “ Atendendo às desordens, rixas, e absolutas, que por várias vezes se tem suscitado relativamente às aguas dos ribeiros d’Aldeinha, e Portos, e Fonte da Moita, e tendo em atenção à antiga postura feita em Câmara de 28 de maio de 1808 …continuará a água da Fonte da Moita a ser distribuída na conformidade da sobredita Postura, da maneira seguinte: Terão princípio as regras em 15 de abril de cada ano, acabando em 15 de outubro relativo, ou aquelas pessoas e prédios já estabelecidos por costume, sendo levada pelas mesma veredas do costume, sem oposição alguma, com a multa de seis mil réis, contra toda a pessoa, que contravier, aplicada para as despesas deste concelho, além do prejuízo que causar a qualquer particular, ficando no resto do tempo, pertencendo a mesma água para trabalhar o engenho d’azeite, chamado o Lagarito.”2
Pelas Posturas Municipais podemos lobrigar os eternos conflitos pela posse e uso da água, bem como avaliar as massas de água que então jorravam nas cercaduras da vila, com especial enfoque na relevância da água proveniente da Fonte da Moita que permitiam a movimentação de engenhos hidráulicos, como o engenho de azeite.
Uma pedra epigráfica de 1857, colocada na fonte, dá-lhe um tempo em que as mãos dos nossos antecedentes a cobriram com transpiração, seixo, argamassa e cal.
Romântica e melancólica, sentiu aos seus pés um tanque coberto onde as lavadeiras purificavam as roupas das famílias e das casas brasonadas, tarefa intercalada com pausas de palratório e aventuras amorosas nas sombras das amoreiras que por ali lhe faziam cortejo.
Conviveu com alguidares, com a roupa estendida pelos prados verdejantes adjacentes, com carroças dos aguadeiros, com bilhas de barro que vendiam água porta a porta; viu as juntas de bois a voltear os campos do Paúl, do Lagarito e da Lameira; contemplou os pescadores entretidos na captura dos sáveis, que já naquele tempo era o peixe de predileção destes povos; bem como sentiu a labuta diária junto dos milheirais, dos feijões, das couves, das batatas, das abóboras, pois da água e do empenho de cada um dependia a fertilidade do lar e o seu ganha-pão.
Os episódios de toiros à solta naquele local multiplicavam-se nos tempos áureos da tauromaquia, dada a proximidade da centenária praça de toiros, a segunda antiga de Portugal. Em meados do século passado, os animais conduzidos através dos campos pelos pampilhos dos campinos muitas vezes mudavam o trajeto para as imediações da fonte, o que obrigava as lavadeiras e os namorados a procurarem refúgio em cima das oliveiras. Por vezes, os toiros escapavam-se mesmo até à Moita e à Barquinha, entrando pelas casas adentro.
Não restava às populações outra alternativa que não fosse ir para baixo da cama, ou quando tal não fosse possível, para baixo do colchão, enquanto o gado bravio não fosse embora.

Vozes e cantigas corriam pelos valados da Aldeinha até à Barquinha, falas de gente que aprendeu naquela universidade da vida, porque não lhes sobrava muito tempo para fazer ou aprender qualquer outra coisa.
Em 1857, a Câmara Municipal sentiu a necessidade de construir um fontanário junto desta abundante nascente. A obra orçou em 815 mil réis. Duas bicas passaram a correr continuamente naquele local.
Em 1863, com os fundamentos insertos na ata da sessão do dia 9 de Agosto, sendo presidente António Gonçalves Rato, e reconhecendo a Câmara “…agravo e utilidade que resulta aos habitantes desta Vila Nova da Barquinha da ereção de um chafariz dentro da mesma vila, alimentado pela abundante Fonte pública denominada da Moita, distante do centro desta povoação um quilómetro, e ainda mais da ponte que fica ao nascente desse centro (estrada Barquinha- Tancos); cujos habitantes pela distância em que aquela fonte lhes fica recorrem aos poços dos particulares porque outras águas não têm para uso doméstico…” decidiu-se construir um chafariz “no Largo do Rebelo (então proprietários da Quinta da Lameira), sítio em que se bifurcam as ruas que se comunicam às estradas que vêm de Tomar e Torres Novas…”, onde se situa hoje em dia a Caixa Geral de Depósitos. Recordo que a atual Estrada Nacional n.º 3 (Rua capitão Salgueiro Maia) fora construída no início dos anos 60, pelo que todo o trânsito se fazia pela baixa da Barquinha.
O projeto foi entregue ao arquiteto Joaquim Santana Haiseler e face à dificuldade de tesouraria do Município – devido aos gastos avultados da recuperação da Fonte da Moita em 1857 – foram “aproveitados” para a construção do chafariz materiais provenientes de 3 lugares: do Convento do Loreto, do antigo Padrão da Ponte de Tancos e do Pelourinho de Tancos.
Ficaria concluído o chafariz desta vila em 31 de dezembro de 1863, data em que passa a receber água proveniente da Fonte da Moita, ficando a bica norte a lançar 6 canadas (12 litros) de água em 45 segundos e a bica sul 6 canadas em 40 segundos.
Nos anos seguintes, construída que estava a linha do Leste dos caminhos de ferro, os ferroviários passaram, também, a utilizar a Fonte da Moita, enchendo dezenas de barris de madeira com água que transportavam em carro de mão pela Rua da Fonte até à estação da Barquinha, a escassos 100 metros, e dali saíam por vagão para a estação do Entroncamento.
As sobras da água da fonte eram sempre aproveitadas e transportadas por caleiras ou levadas e repartidas pelos territórios a sul e a poente, do Paúl, da Quinta da Lameira e da Quinta do Lagarito.
Longe vão os tempos em que a vila tinha como ponto de encontro as bicas da Fonte da Moita e bicas do Chafariz da Barquinha, locais onde a conversa fluía como a água que matava a sede, lavava as roupas, regava os campos e se tornava o ingrediente principal dos refrigerantes produzidos pelas fábricas barquinhenses: Progresso, situada no Paúl; Almourol, situada no Largo Infante Santo; Capela, situada na mesmo Largo, e a Baía, com sede na Travessa dos Descobrimentos, todas utilizando “a finíssima água da Moita”.

Em finais dos anos 90 do século passado, os terrenos a sul e poente da Fonte da Moita eram propriedade da Quinta da Lameira. Aquando das obras de urbanização dessa encosta (Rua da Alvorada, Rua de Dissay, etc.) foram achados alguns troços já inativos de regadeiras e canais que conduziam água até ao Paúl e à Lameira.
Neste último lugar ainda se encontra um gigantesco tanque, qual reserva estratégica “… para regar algum pomar, ou horta, por falta de chuva e causa de gelos, e ainda alguma seara de pão, cuja falta de água a possa arruinar, ou alguma terra que se não possa semear por endurecida, e que pela dita falta não produza novidade…”2
Junto da fonte há um edifício, atualmente sem utilização, que foi a primeira estação de tratamento da água canalizada de abastecimento público a Vila da Barquinha. O líquido passava por tanques de gravilha calcária, onde depurava, para poder, posteriormente, ser consumida pela população.
A fonte, como tantas outras por esse Portugal fora, acabou por secar perdendo a sua utilidade económica e social.
Todavia, não existe nenhum barquinhense e moitense que não tenha ouvido falar nela. A Fonte da Moita assinala a determinação de um povo, porquanto foi ali que os nossos ancestrais encontraram o precioso líquido, de que tanto necessitavam.
A sua história, a crónica deste povo que ali acorreu em dias de invernia, primaveris e de sol ardente, lobrigam um pedaço do nosso caminho de vida. Recordamos que não existem bilhas, cântaros, lavadeiras e amoreiras, mas memoramos a sua génese e a sua água fresquinha e finíssima, de um tempo que não volta atrás.
1Tombos da Ordem de Cristo, Comendas do Médio Tejo (1504-1510), ed. Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2005.
2Postura de 1837 da Câmara da Barquinha
Fotografias do Arquivo Municipal António Roldão, Teresa Gil e Mário Ferreira
Artigo também publicado na revista ZAHARA | Nº40 | DEZEMBRO 2022