Festa dos Tabuleiros 2023. Fotografia: Luís Ribeiro/mediotejo.net

A Festa dos Tabuleiros pode ser apreciada de muitos pontos de vista: económico, religioso, estético… mas também político, no melhor sentido da palavra, aquele que significa construção da cidade ou da polis enquanto sociedade organizada, que formamos.

Qualquer unidade social existe como um processo histórico em permanente construção e desconstrução, agregação e desagregação. Qualquer unidade social, por exemplo uma cidade ou um concelho, é hoje um ponto no seu percurso histórico atravessado por forças contraditórias que tornam a sua existência mais complexa do que sempre podemos perceber. A Festa dos Tabuleiros pode ser entendida como um instrumento colectivo de construção social da cidade e do concelho. Um instrumento raro, dotado de um enorme poder.

São milhares as pessoas e muitas as organizações locais que trabalham para a concretização de um objectivo comum. É um projecto mobilizador de compromissos e de recursos e que, de cada vez, tem de criar as suas próprias condições de realização, o que não significa recusar o que vem de trás.

Num tempo (numa civilização?) em que parece só existir o eu individual consumidor, foge a essa matriz uma jovem a treinar pelas ruas da cidade o equilíbrio do tabuleiro que lhe vai ser confiado. Esse é apenas um ponto da teia que realiza a Festa. Deixou o seu conforto, talvez do sofá ou do telemóvel, para participar de um projecto colectivo como produtora, alguém que faz. Não iria se não tivesse gosto em fazê-lo, talvez mesmo orgulho de participar no desfile, a satisfação de estar a contribuir para algo muito maior que ela, algo que sabe muito bem não conseguiria fazer sozinha.

Essa teia acima referida não é constituída apenas de gestos ou comportamentos visíveis, mas sobretudo de sentimentos, de compromissos, de desejo de pertença, de satisfação, de superação dos contratempos. O que se passa com aquela rapariga ocorre com milhares de outros participantes, individuais e colectivos, que produzem a Festa dos Tabuleiros.

Gerir uma cidade pode ser apenas articular processos, administrar sistemas, conjugar recursos e necessidades. Construir uma cidade tem de ser muito mais que isso. Gerir uma cidade pode ser tarefa exercida por um ou vários centros de decisão, por vezes a funcionar de cima para baixo, tipo comando e controlo. Construir uma cidade é um fenómeno muito mais complexo, pois implica um movimento de baixo para cima capaz de reunir, num todo funcional, as pessoas individuais e as forças colectivas que, de outro modo, poderiam actuar soltas e desencontradas. 

Só uma boa dose de orgulho de pertença e identificação pode produzir uma Festa dos Tabuleiros. E só uma Festa dos Tabuleiros, ou algo com um poder similar, pode produzir esse orgulho de pertença e identificação. É um processo circular, que se auto-alimenta. Tal como é circular e auto-alimentado um processo de desagregação social.

Percebe-se, por isso, como uma Festa como esta é um exercício do poder colectivo de construir uma cidade em sentido contrário às forças de desorganização e desestruturação, que sempre existem. Uma cidade, como qualquer outra unidade social, está sempre a viver um processo de entropia social e outro de neguentropia social. A Festa dos Tabuleiros é a afirmação das forças da vida sobre as ameaças da morte.

E é também um desafio, por exemplo, às outras cidades e concelhos, e mesmo ao país, para que pensem quais são os instrumentos e com que eficácia os usam na reconstrução daquilo que são. Uma unidade social em que as forças de desagregação têm mais poder que as de agregação está em processo de decadência. Lembremo-nos que a História nos mostra inúmeras cidades que foram prósperas e hoje são apenas ruínas e outras que hoje apenas resistem para não morrerem. Algo diferencia aquelas que estão em ascensão.

*O autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Doutorado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, docente aposentado (ESTA-IPT e Escola Dr. Manuel Fernandes), membro do Centro de Estudos de História Local de Abrantes.

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