"A Espiga e a Ascensão na tradição Ribatejana", por António Matias Coelho. Foto: DR

Hoje é dia de Quinta-feira de Ascensão. É feriado em vários concelhos do Ribatejo e num deles, o da Chamusca, é mesmo o dia grande, o da sua festa maior. Se andar por essas estradas, em especial as que atravessam campos de cultivo, vai encontrar quem ainda apanha a espiga e, por a achar benfazeja, a levará para casa onde religiosamente a guarda até à Ascensão do ano que vem. Nesse dia, o calendário cristão assinala a subida de Jesus ao Céu – a Ascensão. A meio da primavera, quarenta dias depois da Páscoa, que festa é esta e o que é que ela tem a ver com a nossa cultura tradicional?

Da Páscoa à Ascensão

Da Páscoa à Ascensão… quarenta dias vão – diz o povo e assim é. A Páscoa cristã, como já acontecia antes com a Páscoa judaica, é, efetivamente, a festa central do calendário litúrgico, cuja data determina todas as outras festas móveis, como o Carnaval (quarenta dias antes) e a Ascensão (quarenta dias depois).

O costume de dar maior importância ao Natal do que à Páscoa é um costume recente, determinado em grande parte por razões comerciais e que por isso tem pouco sentido. Ainda a meio do século passado era hábito dar as Boas Festas pela Páscoa e os jornais dessa época estão cheios de cartões com esses votos que pelo Natal normalmente não se apresentavam.

Para o cristianismo, mais importante do que o nascimento de Cristo, celebrado pelo Natal, é a sua ressurreição que corresponde à vitória da vida sobre a morte e à salvação da humanidade e se festeja na Páscoa.

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A Ascensão de Cristo, Rembrandt, 1636

A festa religiosa que dá nome à Quinta-feira de Ascensão é, pois, uma solenidade que consagra a saída de Cristo do mundo dos homens, uma vez cumprida a sua missão na Terra. Mas o carácter sagrado dessa quinta-feira é muito anterior ao cristianismo e encerra outros significados não menos profundos.

Assim, também o judaísmo popular assinala este dia como aquele em que se deu uma outra ascensão – a de Moisés ao monte Sinai para receber as Tábuas com os Dez Mandamentos.

Nessa ocasião, a aliança que Deus celebrou com o seu povo estabelecia que, se o povo cumprisse a sua parte, Deus lhe daria condições de prosperidade para a vida agrícola.

Estamos, portanto, em presença de crenças religiosas (judaica e cristã) que concorrem para conferir um caráter sagrado ao mesmo dia – esta quinta-feira. Trata-se de um dia especialmente significativo para as sociedades agrárias tradicionais, como até há pouco tempo foi a nossa, que tanto dependiam da agricultura, da fertilidade da terra, da cadência das chuvas, do favor dos deuses.

Para os conseguir, sempre os agricultores praticaram rituais, fossem quais fossem as divindades invocadas. A apanha da espiga, em Quinta-feira de Ascensão, é um sinal que resta desse gesto antigo que tinha por intenção providenciar, simbolicamente, a fartura de pão para o ano inteiro.

Da Páscoa à Ascensão vai grande parte de maio, se não mesmo o maio todo. Maio é mês particularmente festivo, pois corresponde ao meio da primavera, altura do ano agrícola em que se inicia o amadurecimento das sementes e dos frutos: Por onde maio passou tudo espigou, como afirma a sabedoria popular. Tradições como as Maias no norte alentejano, a Bela Cruz no Oeste ou a Festa das Cruzes no norte do país são manifestações de religiosidade popular que ainda sobrevivem de uma grande variedade de festas populares de raízes ancestrais.

Da Páscoa à Ascensão o tempo é, pois, de festa. É a própria natureza que desabrocha e amadurece, aliada aos dias que vão crescendo e à temperatura que vai subindo, que convida à folgança e à alegria. A Quinta-feira de Ascensão é o corolário destes quarenta dias que são, sem dúvida, os mais belos e mais encantadores de todo o ano.

A Quinta-feira da Espiga

Esta quinta-feira de primavera é ainda hoje, apesar da crescente descaracterização do mundo rural, um dos dias mais sagrados do calendário das gentes das aldeias e vilas do interior do país.

É, nitidamente, um dia fasto, um dia favorável, como o são também, por exemplo, a Segunda-feira de Páscoa (dia da Senhora da Boa Viagem em Constância), a Segunda-feira de Pascoela (dia que até há pouco foi de sestas na Chamusca) ou o 1.º de maio que, muito antes de ser Dia do Trabalhador, já era dia de festa, de levantar cedo para não deixar entrar o maio, que seria sinal de sono e mau presságio para todo o ano. Todos eles são dias de ir passear ao campo, festejar a primavera e louvar a natureza.

Em muitos sítios do país, em especial no sul, que é zona de mais vastos trigais e de mais vincadas tradições mediterrânicas, o povo chama ao dia da Ascensão Quinta-feira da Espiga – e este nome assenta-lhe bem. De facto, mais do que a festa religiosa da ascensão de Cristo, o que o povo espontaneamente celebra é o amadurecimento das searas, colhendo espigas e outros elementos vegetais para compor um ramo que, guardado em casa, há de dar fartura de pão e outras importantes venturas até à Ascensão que vier.

A apanha da espiga, mesmo hoje, quase nunca é um ato solitário. Em tempos, até há cerca de meio século, saía-se para o campo em ranchos, sobretudo de rapazes e raparigas, mas que integravam também gente de todas as idades, incluindo crianças e idosos. Levava-se o farnel que se partilhava à sombra das árvores mais frondosas e então colhiam-se as várias espécies para compor, com arte e afeto, o raminho benfazejo.

A ocasião era propícia, com frequência, ao despontar de sentimentos entre moços e cachopas, trocas de espigas e de olhares em tarde de maio quente que depois davam namoro e muitas vezes ligações para a vida inteira. Fazia-se roda, contavam-se histórias, desfiavam-se cantigas e dançava-se ao toque da concertina, da gaita-de-beiços ou de outro instrumento que alguém levasse e soubesse tocar.

O ramalhete da espiga não tem uma composição fixa, variando muito de região para região e até de uma terra para a outra. No entanto, há elementos que surgem quase sempre e que encerram uma simbologia especial.

Em vários locais do Ribatejo colhem-se habitualmente três espigas de trigo, três malmequeres amarelos e três papoilas, mais um raminho de oliveira em flor, um esgalho de videira com o cacho em formação e um pé de alecrim ou de rosmaninho florido. As espigas querem dizer fartura de pão; os malmequeres, riqueza; as papoilas, amor e vida; a oliveira, azeite e paz; a videira, vinho e alegria; o alecrim ou rosmaninho, saúde e força.

Guardado em casa, o raminho da espiga não deve ser perturbado na sua quietude, sendo substituído apenas no ano seguinte por outro igual mas mais viçoso.

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Ramo da espiga composto pelo autor destas linhas e fotografado pela Foto Romão, em 1994, que se transformou no símbolo da Ascensão na Chamusca

Feriado municipal em 30 concelhos portugueses

A figura jurídica do feriado municipal foi criada pelo primeiro governo da República, logo a seguir à revolução de 5 de outubro de 1910. Um decreto publicado na semana seguinte à chegada dos republicanos ao poder, estabelecia, para além de cinco feriados nacionais, que «as municipalidades poderão, dentro da área dos respetivos concelhos, considerar feriado um dia por ano, escolhendo-o de entre os que representam as festas tradicionais e características do município».

Foi ao abrigo desse decreto que se estabeleceu a grande maioria dos feriados municipais que se continuam a gozar nos nossos dias.

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Municípios com feriado municipal em Quinta-feira de Ascensão

Como mostra o mapa, são 30 os concelhos portugueses onde não se trabalha em Quinta-feira de Ascensão, ou seja, cerca de um terço dos nossos municípios param nesse dia. 10 desses municípios são ribatejanos: Alcanena, Torres Novas, Golegã, Chamusca, Almeirim, Salvaterra de Magos, Benavente, Cartaxo, Azambuja e Vila Franca de Xira.

São, no entanto, já poucos aqueles em que se apanha a espiga e menos ainda os que celebram as tradições populares próprias da data. O mundo muda e as tradições, naturalmente, também.

Que fique, ao menos, a memória delas e saibamos explicar às nossas crianças e a quem mais não saiba porque não vamos ao emprego nesta quinta-feira…

*Crónica publicada em 2019, republicada em maio de 2023

António Matias Coelho

É ribatejano. De Salvaterra, onde nasceu e cresceu. Da Chamusca onde foi professor de História durante mais de 30 anos. Da Golegã, onde vive há quase outros tantos. E de Constância, a que vem dedicando, há não menos tempo, a sua atenção e o seu trabalho, nas áreas da história, da cultura, do património, do turismo, da memória de Camões, da comunicação, da divulgação, da promoção. É o criador do epíteto Constância, Vila Poema, lançado em 1990 e que o tempo consagrou.
Escreve no mediotejo.net na primeira quarta-feira de cada mês.

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