Lá bem no cimo, com uma panorâmica de cortar a respiração sobre o vale, a Capela de Santa Marta foi ponto de romaria até aos séculos XIX/XX, sobretudo na quinta-feira das Ascenção, feriado municipal de Alcanena. É um ponto perdido no mapa e que quase passa despercebido ao visitante que a procura, em busca de um daqueles espaços de oração que comungam com a natureza. Foi lugar de devoção de ermidas que, ao longos dos séculos, procuraram ali a reclusão. Bem perto se diz que apareceu Santa Marta em “carne e alma”, numa gruta. Ali os enamorados procuravam a sorte no casamento, enfiando a cabeça num buraco. Uma das muitas surpresas por descobrir no concelho de Alcanena…
Moitas Vendas, aproxima-se o meio dia. Já fomos às Grutas de Santo António (na fronteira entre Alcanena e Porto de Mós) e voltámos, já percorremos a serra em busca de ermidas escondidas, num cenário rochoso e seco característico desta zona da Serra d’aire. Um passeio pelas grutas – oferta muito comum a quem visita e pernoita na cidade de Fátima – ainda nos tenta, mas não era bem este o nosso objetivo. Procuramos a Capela de Santa Marta, a ermida localizada num dos picos da serra, uma das muitas ofertas turísticas patentes no site da Câmara de Alcanena e que nos despertou a atenção pelas características históricas e o facto de, até há um século, ter sido espaço de peregrinação.
Vêm-nos à memória as palavras do antropólogo Aurélio Lopes, numa entrevista recente ao mediotejo.net. Com o surgimento do fenómeno Fátima, muitas peregrinações espalhadas pela região foram perdendo gradualmente fiéis, algumas praticamente extinguindo-se. A peregrinação ao Cabeço de Santa Marta não figurava entre as mencionadas com maior relevância, mas o facto é que também ali havia um culto que esmoreceu. A acessibilidade, divagamos, também poderá ter ajudado.

Voltamos a Moitas Venda e entramos pelo interior da aldeia. Não encontramos placas a indicar a existência da Capela e sendo esta fora do núcleo urbano (uma ermida é por definição uma pequena igreja ou capela localizada num local isolado) preparamo-nos para desistir da demanda. Porém, a dado instante, encontramos os tradicionais símbolos dos percursos pedestres desenhados em paredes e postes elétricos e decidimos seguir o trilho.
A Rota de Santa Marta (PR11 ACN) é um dos múltiplos percursos pedestres que o município tem organizados ao longo de todo o concelho. Com partida na Igreja Matriz de Minde, o trajeto é circular e passa pelas localidades de Moitas Venda e Vila Moreira e pretende promover o Cabeço de Santa Marta. “Detém uma das mais belas vistas sobre o concelho de Alcanena e, para além da escarpa de falha do arrife, dar a conhecer o Olho da Mari’Paula, nascente de uma ribeira que apenas se encontra ativa nos invernos mais rigorosos”, refere a informação municipal.

A rota pedestre é um bom ponto de referência, dada a ausência de indicações. A dado instante um corte abrupto para uma subida, à esquerda, com a primeira estação de uma via sacra, indica-nos que finalmente encontrámos o caminho. Segue-se um subida íngreme, cerca de 800 metros, até chegar ao cume, seguindo sempre a rota da via sacra. No final encontramos um posto de vigia, um parque de merendas e uma extensa vista sobre Alcanena.
Valeu o esforço, mais não seja pela panorâmica! Olhamos em volta.
Mas …onde está a ermida? O parque de merendas está em boas condições, há lixo, o que evidencia utilização, e até um grelhador, embora no final de agosto, com um pico de calor, não pareça de todo agradável ali almoçar. Vamos subindo mais um pouco, encontramos as ruínas do que parece ter sido uma moradia, uma eira e um balcão de atendimento, semelhantes aos construídos algo de improviso aquando os santos populares, envolvido pelo arvoredo e vegetação. Por fim, ao fundo de um carreiro, ergue-se a Capela, um ponto de alvura no verde e castanho da serra.

É a localização que lhe confere o atractividade. Uma extensa vista e o silêncio… O vento a bater, muito leve, e o som dos pássaros. Há quem faça quilómetros, viaje até outros cantos do mundo, para encontrar locais com tamanha carga espiritual, embrenhados no coração da natureza. O mediotejo.net encontrou-o ali, na Serra D’aire, a poucos quilómetros de Alcanena.
Há vida, apesar de tudo. Vários painéis informam que houve ali uma requalificação, no âmbito do Proder, da Casa do Ermitão e acessos, pela Freguesia de Moitas Venda. Um total de 22.465 euros de investimento, com 10.783 euros de comparticipação comunitária. Batemos à porta, chamamos por alguém, mas encontramo-nos sós.
Será que a capela está aberta? Subimos a pequena escada, abrimos o portão e aproximamo-nos da porta. Está fechada, mas há uma janela. Espreitamos…
A informação recolhida antes da viagem já nos dera uma ideia do que iríamos encontrar. É um espaço singelo, direcionado para a oração, sem grandes adornos, relativamente pequeno, com uma fila de bancos de madeira voltados para um altar. Um arco triunfal revestido a azulejos confere-lhe alguma cor. A informação municipal explica que se trata da maior riqueza deste templo, edificado em 1613, no alvor da Idade Moderna, e restaurado em 1879, que lhe conferiu o painel barroco. Este elemento reflete o momento em que Santa Marta pisa um dragão.
Santa Marta (para além de ser uma cidade na Colômbia) está presente na narrativa bíblica como Maria Betânia e possui devoção no catolicismo, anglicanismo e entre os ortodoxos de leste. Marta era irmã de Maria e de Lázaro e vivia em Betânia. Surge pela primeira vez aquando os episódios que antecedem a morte de Lázaro e acompanhou o percurso de Jesus Cristo até à ressurreição. Santa Marta é considera a patrona das cozinheiras e, no geral, das donas de casa. O seu dia celebra-se a 29 de julho.
Será eventualmente um bom espaço para escrever, ler, meditar, rezar ou realizar pequenas cerimónias, avessas à tradicional pompa religiosa de circunstância. A Casa do Ermitão também está fechada, com alguma pena. Seria interessante imaginar ali alguém retirado do mundo, reconstruindo a alma sobre a paisagem de Alcanena. Imaginamos que talvez tenha sido esse o caso, noutros tempos, quando alguém se queria penitenciar por algum pecado.
Descendo a encosta, queremos saber mais sobre este Cabeço e a respetiva ermida. Da junta de freguesia, após breve contacto, não chegamos a obter mais informação a respeito. Numa viagem pelos meios online deparamo-nos, no entanto, com um extenso artigo sobre a história do Cabeço, aparentemente criado por um morador e interessado de Moitas Venda.
Há um conjunto de lendas orais que vão sendo esquecidas, adverte: o Boi de Santa Marta, a santa que aparecia em “carne e alma” e desaparecia numa imagem de terra cota, um buraco casamenteiro dentro da capela. Em registo de Igrejas e Capelas há sempre por certo uma história de amor…

Conta a lenda, narra a página, que ali vivia um ermita que era responsável pelo culto à deusa da fertilidade, havendo nas proximidades uma gruta onde, já na época cristã, se dizia que havia aparecido Santa Marta. A ermida, erguido no século XVII, parece ter sido cuidada por ermitas ao longo de toda a sua existência, até há bem poucos anos, quase sempre donos de bois teimosos. Nela existe um buraco que, metendo-se nele a cabeça, se diz que ajuda à busca de marido ou esposa.
São as lendas orais do Cabeço de Santa Marta…
A página garante ainda que o melhor narrador das histórias de Moitas Venda é o morador Manuel Ferreira Jorge. Mas para tristeza de quem procurou este templo escondido, o historiador e jornalista morreu em 2015, tendo sido lançado recentemente uma obra sua, a título póstumo, intitulada “Memórias de uma vida”.
Voltaremos um dia – quem sabe? – talvez num dia de romaria. Tão perto de Fátima, tão longe de tudo, há por esse Médio Tejo locais de peregrinação esquecidos que a tradição popular faz um esforço por obrigar-se a recordar…
Deliciei-me com a leitura deste artigo sobre a Capela do Cabeço de Santa Marta.
Sou torrejano e não subia a este local há dezenas de anos, coisa que fiz há poucos dias, o que me levou a procurar mais informação na internet.
Adianto que está classificado um importante “Castro” no cimo do monte, ainda por explorar e classificar.
Os meus sinceros parabéns à jornalista!
Sérgio Poupado