No roteiro do concelho de Abrantes, muitas das povoações dispõem-se ao longo do Tejo, encontrando-se, na margem direita, a cidade, e na margem esquerda, um local que em tempos antigos foi aglomerado de Alcolobra, logo seguido de Tramagal, sede de freguesia, historicamente provados como itinerários romanos, civilização que pode estar na origem do topónimo Crucifixo, nome próprio de lugar sem paralelo nacional.
Os documentos mais antigos conhecidos a referir a existência de Crucifixo “são uma carta de 16 de abril de 1643, enviada por D. João IV à Câmara de Abrantes e o testamento do padre Marcos Lourenço (o promotor da construção da capela local de São Caetano, hoje já desaparecida), datado de 2 de dezembro de 1697. Ao que parece, o lugar de Corxifisio era já então aldeia importante, pelo que deve ser considerado muito mais antigo. Quanto ao significado do topónimo, é óbvio o seu cariz religioso. Não tem paralelo nacional, a não ser em nomes de ruas e, segundo A. Costa numa quinta em Óbidos”, escreve Eduardo Campo no livro ‘Toponímia Abrantina’.
A freguesia de Tramagal, em termos geográficos, está situada junto à margem esquerda do rio Tejo, sendo das freguesias do concelho de Abrantes uma das que se localiza mais a Oeste, com uma superfície de 24,06 quilómetros quadrados.
Em termos demográficos até 1981 houve uma evolução positiva, com uma população absoluta de 5176 habitantes, altura a partir da qual a população da freguesia começou a diminuir. As razões relacionadas com a existência da Metalúrgica Duarte Ferreira, que durante anos constituiu um dos principais pólos de atração da localidade. Em 2001 a população da freguesia de Tramagal situava-se nos 4043 habitantes.

A história que pode justificar a origem do nome “já vem dos antepassados” conta José Maria Luís ao mediotejo.net. No Crucifixo “havia uma grande cruz ao fundo da aldeia e as pessoas diziam: vamos ao Crucifixo, em referência à cruz que existia lá”, explica.
A cruz já não é do tempo de José Maria Luís, que conta 86 anos. Mas recorda, do seu tempo de rapaz novo, o campo onde, diziam os antigos, ser o local dela, o mesmo que os jovens usavam para jogar futebol. “Dizíamos: vamos para a Cruz, hoje já está um bocado em desuso. Devido à cruz que lá existira, deu origem ao Crucifixo”.
Palavras que José ouviu contar pelo pai, pela mãe e a outros de gerações mais recuadas, sem, no entanto, poder comprovar. “O nome Crucifixo tem mais de 500 anos”, garante.
Natural de Crucifixo, onde reside até hoje, José Maria Luís, como tantos outros, trabalhou como empregado de escritório na Metalúrgica Duarte Ferreira. “Fui para lá com 12 anos e saí com 53. Entretanto, a empresa faliu”. Depois reformou-se e não quer sair do Crucifixo. “É a minha terra, onde cresci e vivi toda a vida. Já não tenho espírito de sair”.
No século XIX, finais da década de setenta, Eduardo Duarte Ferreira iniciou em Tramagal uma empresa de dimensão internacional, a laborar durante mais de 100 anos: a Metalúrgica Duarte Ferreira. Como não podia deixar de ser a empresa que teve a borboleta como símbolo, influenciou de modo significativo a história económica da região de Abrantes, e principalmente a história laboral da freguesia de Tramagal, Crucifixo incluído.

Numa comparação entre os tempos da sua juventude e a contemporaneidade, José Maria Luís vê grande mudanças. “Os jovens saem para outras paragens, procuram outras coisas e empregos. Antigamente a Metalúrgica ocupava quase a juventude toda, hoje já não existe. Uma empresa onde trabalharam 1700 operários. Atualmente os jovens já estudam mais, nós não tínhamos aqui escola secundária, e por aqui ficávamos”, justifica.
Além disso, os jovens na povoação são agora em menor número. “O Crucifixo há 40 anos tinha mais de 100 alunos na escola primária e agora foi tudo para o centro escolar de Tramagal e não temos mais de 20 alunos na primária”, revela, recordando que a escola já contou 125 alunos.
Quando era menino “éramos perto de 40”, assegura, até pela fotografia de 1938 (José entrou para a escola em 1939 com sete anos) onde teve a paciência de contar cada um dos que figuravam naquele registo do passado. “Era uma escola mista de rapazes e raparigas, da primeira à quarta classe”, explica.
Apesar de perder população, por enquanto, Crucifixo ainda oferece comércio, embora os vendedores ambulantes façam negócio na terra, nomeadamente os padeiros porque as padarias fecharam, cafés, lojas de construção civil, uma oficina de alumínios, um pintor de automóveis e uma sociedade recreativa encerrada desde março por falta de direção.
“A Sociedade é espetacular! Já fez marchas, teatros, música, tudo acabou. Com muito boas condições, ringue para jogar futsal. Não há direção, a população está envelhecida e há pouca gente disponível para tomar conta daquilo… agora é tudo com computadores”, lamenta.

José é viúvo, com dois filhos que também não ficaram em Crucifixo. “Um vive no Algarve e outro em Santa Margarida”. Para se entreter, em dias de boas condições meteorológicas, anda de bicicleta e já nem trabalha na horta. “Para quê? Não vale a pena! As minhas refeições chegam do Centro de Dia”.
Realidades diferentes de tempos diferentes de uma terra localizada, provavelmente desde que os romanos andaram por aquelas bandas, ao lado da ribeira de Alcolobre que desce do lado das Bicas e desagua na margem esquerda do Tejo entre Tramagal e Santa Margarida, junto à herdade do Carvalhal. Na parte final do seu percurso separa o concelho de Abrantes do de Constância.
“Os vestígios humanos atuais são, na sua maioria parte, ruínas emergindo de tempos diferentes e nas zonas mais diversificadas da ribeira. Dos romanos encontram-se materiais importantes, com indícios de uma ocupação humana bastante hierarquizada e de uma exploração agrícola intensiva. Perto das Bicas, num lugar conhecido como Vale da Vila, foram encontrados pedaços de colunas e parte de um mosaico com motivos vegetais, sinal de que existiu ali uma residência com certo luxo, de algum proprietário endinheirado”, contou a historiadora Teresa Aparício, na revista Zahara.
“Na herdade do Carvalhal, podemos ver restos de um balneário onde ainda há pouco tempo foram feitas escavações arqueológicas. Não muito longe, foi encontrada uma necrópole, tendo sido escavadas sepulturas que revelaram um espólio importante, sobretudo em peças de vidro, algumas delas rara pela sua beleza e estado de conservação. Dizem os mais antigos que, perto destes complexo de ruínas, viram restos de uma construção que fazia lembrar um anfiteatro, destruído por alguém para fazer uma eira, mas dele não se encontrou até à data qualquer vestígio material”, escreveu a professora Teresa Aparício na revista Zahara, sugerindo quem (ou o quê) poderá estar na origem do topónimo Crucifixo.

Até porque foi encontrado um miliário de Constantino Magno na área limítrofe de Abrantes, que provavelmente serviu de sopé à cruz referida por José Maria Luís.
O professor Joaquim Candeias da Silva escreveu no ‘Ficheiro Epigráfico’ um suplemento da revista Conimbriga, destinado a divulgar inscrições romanas inéditas de toda a Península Ibérica, que “uma nova coluna viária encontrava-se tombada junto de uma outra de aparelho mais recente, num sítio bem identificado do Crucifixo.
Mas dizem os mais antigos que ambas estiveram desde tempos imemoriais implantadas por ali, sobrepostas (a mais velha sobre a mais nova) à ilharga de uma viela que hoje é conhecida por ‘Rua da Tapada da Moura’. Ali cruzava com um velho caminho térreo vindo da Herdade do Carvalhal, a conhecida estação romana de Alcolobra, muito próxima, se bem que já do vizinho concelho de Constância”.
Segundo Candeias da Silva “trata-se de um fuste troncocónico de granito, de grão bastante fino […] pela base, aplanada e com uma saliência central a preceito, parece adaptar-se melhor aos implante sobre a outra pedra do que ao assentamento no solo”.
Acrescenta que, “tomando por comparação outros exemplares do género aparecidos na região, designadamente o miliário do Vale da Lama e o da Lagoa Grande é de admitir que este do Crucifixo teria uma altura bastante superior à atual, pelo que deve ter sido amputado no topo, talvez em mais de um terço, a fim de ser adaptado a outras funções”.
“Quais? Tanto a toponímia do lugar, como a configuração da pedra nas duas extremidades (no topo tem vestígios do encaixe de uma cruz) – tudo a condizer com o testemunho dos moradores – apontam no sentido de ela ter sido reaproveitada como elemento de cruzeiro. […] Talvez alguém mais devoto, já com o cristianismo e a nacionalidade portuguesa definitivamente implantados, tenha aproveitado a coluna para fazer dela cruzeiro, dando assim, com fortes probabilidades, origem ao nome do lugar. Na verdade, este tipo de sacralização de materiais pagãos não era raro, e tanto mais em zonas onde a boa pedra faltava”.
O tempo e a evolução do nome geográfico alterou Corxifisio para Crucifixo, uma clara referência ao cristianismo, numa pequena povoação que carrega, independentemente do topónimo, a sua cruz. Um fardo cada vez mais comum: o despovoamento.

*Publicada em 2018, republicada em agosto de 2019