Miguel Lopes Batista é natural do Pego de onde saiu com 20 anos e dedicou-se ao negócio da panificação em Ponte de Sor. Créditos: mediotejo.net

Na Padaria Central ou fora dela Miguel Lopes Batista é tão pegacho como qualquer residente no Pego, onde viveu até aos 20 anos de idade. Atualmente tem 71. Pertence a uma geração bairrista e está tão à vontade nos costumes da Aldeia das Casas Baixas como nas tradições alentejanas de Ponte de Sor, cidade que o acolheu ainda no tempo da ditadura. Define-se como “um pegacho de gema” mas conhece os segredos do Alentejo, incluindo das boleimas. As suas, apresenta-as em versão tradicional, de ingredientes simples: massa de pão, banha de porco, açúcar e canela. Tal simplicidade transportou fama até ao Minho.

Contudo, a sua profissão de padeiro conta uma história curiosa, digamos que desenha o percurso de um jovem numa encruzilhada com três caminhos, ou, se quiserem, um moderno três em um: foi militar de Abril, estudante de engenharia e professor. Escolheu ser padeiro.

Aluno do Colégio La Salle, em Abrantes, Miguel Batista ali estudou até ao sétimo ano, como interno. Nascido no seio de uma família sem grandes capacidades económicas – o pai era padeiro no Pego – o jovem trabalhava, juntamente com outros 14 alunos, a servir à mesa, desde o pequeno-almoço até ao jantar, para compensar os custos do colégio privado.

“Tenho uma boa lembrança do que passei no Colégio La Salle, das amizades que fiz com os rapazes desde filhos de gente com muito dinheiro, até colegas da Guiné. Quando estive na Guiné, o último jantar foi na casa Peralta. No dia seguinte eram independentes”, recorda.

O Colégio La Salle , em Abrantes. Créditos: DR

As memórias transportam-no, ainda, para o Colégio Nossa Senhora de Fátima, “só para raparigas onde estudava a irmã desses meus colegas da Guiné. Muitas vezes era incumbido de ir buscar as hóstias para o Colégio La Salle, às doroteias. Aguardava junto à sala onde os pais visitavam as filhas. Sentava-me, e ao fim de um bocadinho começava o corrupio das meninas”, diz a rir.

Lembra igualmente a Tuna do Colégio que viajava muito para atuações, incluindo para Espanha. “Foi uma maravilha!”, garante.

De Abrantes inscreveu-se no Instituto Superior Técnico e na Academia Militar, em Engenharia Eletrotécnica, nesta última instituição muito pelas “boas condições” num Portugal em plena Guerra do Ultramar.

Pela promessa de “seiscentos escudos por mês, só que nunca nos deram nada”, conta ao nosso jornal. Ainda assim optou pela Academia Militar, “ao fim de um ano já estava amadurecido com toda a luta académica que havia nas universidades no inicio dos anos 70, naquele período antes do 25 de Abril”, e portanto com ideais contrários aos do Estado Novo.

Acabou por desistir da Academia Militar, pediu para sair, o que veio a acontecer no último dia daquele ano letivo. Pelo IST ainda passou um ano e meio, mas não escapou da guerra colonial. “Naquele ano só entrámos 33 para a Academia Militar e precisavam de mais de 200 novos alunos, estávamos em guerra e precisavam de oficiais”, esclarece.

Um retrato de Miguel Lopes Batista na fábrica da Padaria Central, em Ponte de Sor. Créditos: mediotejo.net

Miguel Lopes Batista refere ter ido “entregar a Guiné” uma vez que estava “conectado” com os capitães das Escolas Práticas de Mafra e de Vendas Novas “e já sabia o que se ia passar”. Ora sabendo do plano para uma revolução, foi para a Guiné. Se assim não sucedesse, tinha quem o levasse para a Bélgica, mas Miguel recusou a viagem, partindo para África. A 16 de março de 1974, aquando do levantamento militar das Caldas da Rainha, Miguel estava em Vendas Novas. “Ainda saí com o meu pelotão para a rua, mas depois recolhemos porque ficou sem efeito, a intentona”, recorda.

Na Guiné afirma nunca ter combatido, tendo como missão a aproximação ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) com o objetivo de colocar um ponto final na guerra, com vista à independências da colónias ultramarinas.

De África não regressou a Abrantes. Os caminhos levaram-no para Ponte de Sor, no seguimento de uma proposta de trabalho que o pai recebeu de um padeiro de Longomel, que acabou por ser seu sogro. “Ofereceu mais mil escudos de salário”, um aumento que permitiu que fosse estudar para o Instituto Superior Técnico, antes de ser mobilizado para a Guiné.

Em Ponte de Sor “como já tinha algumas cadeiras do curso de Engenharia aprovadas, comecei a dar aulas na Escola Secundária, e como sempre gostei de matemática, de física e química” foi precisamente essas matérias que lecionou durante cinco anos.

As boleimas de Miguel Batista, em Ponte de Sor. Créditos: DR

Enquanto isso, arrendou uma padaria em Domingão e posteriormente recebeu uma proposta para gerir uma outra padaria, dentro da cidade de Ponte de Sor. Nesse momento percebeu que teria de optar; continuar no ensino arriscando uma colocação longe de casa – já casara e era pai do primeiro filho – ou dedicar-se ao negócio do pão.

Mais tarde, até por conselho de Manuel Ferreira Patrício, natural de Montargil, que viria a ser reitor da Universidade de Évora, esteve tentado a terminar o curso naquela universidade alentejana. Todavia, estava decidido a dar continuidade à produção do pão, que hoje é um negócio familiar, com uma fábrica e uma loja no centro da cidade, com planos de alargamento a curto prazo, onde trabalham os seus dois filhos e as duas noras, contando com 26 funcionários.

Nesse negócio, Miguel Lopes Batista agarrou a tradição das boleimas, cumprindo a receita que lhe foi transmitida sem introduzir qualquer inovação. Na época em que a recebeu, na padaria que arrendou no Domingão em 1980, os padeiros faziam um quilo ou dois de massa para boleimas. Atualmente a Padaria Central fabrica diariamente 20 quilogramas de massa para esses bolos.

As boleimas antes de entraram no forno na Padaria Central. Créditos: mediotejo.net

Em Ponte de Sor, as boleimas estão ligadas à venda dos suínos, ou seja, à feira dos porcos e à grande quantidade de banha, produto que nem sempre era fácil escoar no mercado. “À massa panar (massa do pão) junta-se a quantidade certa de banha. Resulta uma massa muito liquida. Depois de bem amassada, engrossa e permite ser trabalhada, estende-se com o rolo da massa. Polvilha-se com açúcar amarelo ou branco com canela em camadas. Nós pomos três camadas, em Portalegre só usam duas camadas, e vai ao forno. Fica uma massa não rija e muito doce. É assim que se faz a boleima”, explica.

A narrativa popular conta que o bolo típico é uma variante do pão ázimo consumido pelos judeus pela Páscoa, em memória da fuga de Israel. A experimentação acrescentou outros ingredientes à base feita com farinha, azeite e sal. Este bolo, de acordo com quem passa a estória, não fermentava, porque numa fuga repentina, não houve tempo para o pão levedar. Mas uma coisa sabe-se da receita: surgiu do aproveitamento das sobras de massa do pão de trigo.

As boleimas de Miguel Batista, em Ponte de Sor. Créditos: DR

À padaria de Miguel, além dos clientes de Ponte de Sor, os gulosos chegavam também de concelhos limítrofes como Abrantes… pelo menos até à chegada da covid-19. “Durante a pandemia fechei. Mas antes, todos os dias à noite tínhamos a boleima pronta, sempre de portões abertos. As pessoas sabiam e passavam pela fábrica. Juventude, pessoas de mais idade. Vinha tudo à boleima! Tornou-se tradição e um local de convívio”, conta.

Agora os portões só se abrem à sexta-feira à noite. Mas a procura pela tradicional boleima retomou. Diz que os clientes “alguns foram meus alunos, trazem os filhos e outros já trazem os netos. Vem gente de muito lado à procura da boleima, não só do Alentejo. Mandamos bolos para Lisboa, para o Porto”, sublinha dando conta de ter sido entrevistado até por uma associação da Universidade do Minho.

Para além da boleima, a padaria também fabrica diariamente o bolo finto, muito popular no Pego e noutros tempos presente nas mesas de todos os casamentos. Por isso também há quem o conheça por bolo de noivo, nota.

Miguel Batista e o seu filho mais velho, Nuno, na fábrica, na zona industrial de Ponte de Sor. Créditos: mediotejo.net

Sem arrependimentos por ter escolhido a vida de padeiro, Miguel Batista reconhece que atualmente vivem-se tempos difíceis. “Da semana passada para esta recebi farinha mais cara cinco cêntimos por quilo”, refere a propósito da crise dos cereais provocada pela guerra na Ucrânia. Teme que, de um dia para o outro, falta a matéria prima, embora até ao momento “não tenha havido qualquer problema porque a farinha panificável, que usamos, não vem da Ucrânia, mas da América, do Canadá e da Europa”, esclarece.

Do futuro, ninguém sabe. Seja como for, a nova geração dos Batista já agarrou a tradição.

Paula Mourato

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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2 Comentários

  1. Sr.Miguel foi meu professor,foi sempre uma pessoa muito humana e via-se que gostava do que fazia tal como quando vendia pão porta a porta,semore simpático e reinadio que continue sempre assim ,um abraço

  2. Sr Miguel grande amigo sempre pronto a ajudar, abre sempre as suas portas a toda a gente, familia simpática de grande coração. Cumprimentos e abraços a todos

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