No rescaldo do feriado de ontem, não é nenhum favor especial que faço se ainda for, em tempo, referir-me ao 25 de Abril. Eu ia fazer os 6 anos. Tenho, apesar da tenra idade, algumas memórias sólidas. A primeira, de não haver aulas nesse dia (eu entrei para a escola com 5 anos de idade e já estava na então primeira classe, que tinha aulas até aos sábados e terminavam com o hino nacional cantado).
A segunda, de o meu pai nos pedir que ficássemos em casa porque o ambiente estava muito agitado. Logo a mim, que fui sempre um “filho da rua”, cujo quintal de brincadeiras sempre foi a cidade toda de Abrantes… Mas devo ter respeitado. A coisa era séria.
A terceira, de haver alguma escassez de bens alimentares por essa altura.
E depois, aos poucos, de a política ir ganhando expressão de discussão pública, em cafés, em tertúlias. O meu pai passou a comprar dois jornais diários, o Diário Popular e a Capital ou o Diário de Lisboa, de vez em quando e algumas notícias eram partilhadas nos serões em família, após o jantar. Acompanhei muitas vezes o meu pai nas discussões que mantinha, sempre saudáveis, na “Tendinha do Chafariz”, após o almoço. Pessoas com pontos de vista diversos mas que se respeitavam.
A minha consciência política foi sendo ganha por ali.
Mas voltando ao 25 de Abril, nesse dia pouco se passou em Abrantes. Porém, no primeiro de Maio houve grande manifestação. E eu lembro-me de lá estar, um pirralho. Cresci a ouvir e a adorar ouvir e cantarolar Ermelinda Pereira e o seu “Somos Livres” que, para mim, era a “Gaivota voava, voava”. E eu sentia aquela frescura de madrugadas de esperança que se abriam na vida de todos.
Coisa diferente é a gratidão que devemos sentir por aqueles que, pioneiros, corajosos, defensores da Pátria, arriscaram passar do sonho à realidade e fazer acontecer uma revolução, pacífica mas firme, serena mas determinada, conciliadora com o passado mas com uma nova alma imaginada para o futuro.
Entre eles Salgueiro Maia é o nome que mais consensos deverá reunir, mais que Otelo, Spínola ou Vasco Lourenço. Muitas vezes em casa do meu amigo e mestre Armando Fernandes ouvi falar de Fernando Salgueiro Maia, sempre com carinho, respeito, sentido fraternal. Dele, da família dele, da sua simplicidade, da sua grandiosidade, do seu despojamento. O Armando e o “capitão” eram amigos pessoais.
Por isso o gesto mais marcante do dia de ontem foi a reconciliação de uma certa parte de mim e do segmento político-ideológico onde me insiro, através do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, com a memória, os feitos, o legado de Salgueiro Maia. Marcelo está a promover uma nova forma, mais descomplexada, mais verdadeira, menos sectarista, de olhar para a história.
A medida, simbólica, de condecoração de Salgueiro Maia com a Ordem do Infante D. Henrique no próximo dia 1 de julho, dia em que o “capitão de Abril” faria 72 anos, é de uma amplitude sem precedentes. Como escreveu ontem o meu amigo Vasco Cunha, Marcelo ainda vai promover a pacificação de alguns setores do PSD com o legado de José Saramago. E Marcelo tem, de facto, uma nova postura perante os fenómenos do mundo. E tenho orgulho em ter ajudado a escolhê-lo como meu e nosso Presidente. Até agora superou com distinção todas as provas. Todas.
É um facto que alguns “capitães de Abril” se arvoram donos, proprietários ou fiéis depositários de Abril. E é um facto que alguma esquerda se apropriou da mesma e estigmatiza algum centro e, sobretudo, direita, face à revolução de Abril. Sempre achei isso um disparate. Sempre usei cravo vermelho na lapela, sempre fui grato às conquistas da liberdade, da democracia, dos direitos sociais inspirados na revolução de Abril. Nunca fui, contudo, um extremista. Nunca. E espero conservar lucidez para nunca o ser. Para mim cumprir Abril é reformismo após a revolução. Para mim cumprir Abril é o incremento diário em lugar da disrupção permanente. Para mim cumprir Abril é inclusão e coesão em lugar de dividir pessoas por rótulos.
Por isso, nos 42 anos de Abril é tempo de dizer a alguns pseudo-proprietários do 25 de Abril que o que está bem feito, bem feito deve ficar. Obrigado pelo vosso contributo. Tendo sido altruísmo não esperem mais que gratidão. Não são donos de nada mais para além dos vossos pertences pessoais e das memórias que guardam. Nem venham com ameaças de novo golpe nem com paternalismos idiotas fundados no “não foi para isto que fizemos o 25 de Abril”. Já não há paciência nenhuma para este disco riscado, esta cassete de feira gravada sem qualidade, para esta reminiscência obsoleta que os retém prisioneiros de avançarem na história.
A revolução fez-se para que o povo tomasse o curso da história nas suas mãos, em liberdade e democracia. Isso inclui dar-lhe o destino que quer, agora num espaço europeu mais alargado, com regras que ultrapassam os limites da nossa soberania. E tomar o curso da história nas nossas mãos significa também a capacidade de dizer “não”, mesmo àqueles que nos trouxeram o que Abril nos trouxe de positivo. E as ameaças em sentido contrário são, em si mesmas, contrárias ao espírito de Abril.
Depois da revolução, o lugar dos militares que continuaram a servir a sua instituição, voltou a ser nos quartéis. Quase todos compreenderam isso. Sobretudo Salgueiro Maia. E é por isso que ele é diferente da maioria dos demais que, arvorados de penas de pavão, acham que terem estado no golpe da revolução lhes confere um estatuto especial.