António e Maria Luísa retratam uma época particular da história portuguesa. Contudo, bastará procurar nos cartórios nacionais por registos de matrimónios com 60 anos e, possivelmente, serão centenas (ou até milhares) os casamentos por procuração, muitos deles de madrinhas de guerra com soldados que combatiam em África, como foi o caso de António Catarino e Maria Luísa Viana, de Vila de Rei, que casaram sem se conhecerem pessoalmente.
Duas são as pastas, de um castanho claro avermelhado, cheias de passado. Uma história de amor que começou com guerra e palavras escritas quase sempre a tinta azul. António Joaquim Guerra Catarino partia de Alijó (Vila Real) para Angola aos 13 anos, onde o esperavam o pai e um tio, sem imaginar que um dos seu apelidos era um pronuncio de um conflito que o levaria à mata em combate, embora na missão de radiotelegrafista, com arma à cintura e de rádio às costas.
“Como sabiam das notícias se não houvesse rádio na mata?”, questiona, em jeito de pergunta retórica. “Umas vezes iam uns outras vezes iam outros”, recorda António, atualmente com 82 anos e que por Angola ficou até pouco depois do 25 de Abril, revolução que colocou um ponto final na Guerra Colonial.

Em Vila de Rei, Maria Luísa Pires de Moura Viana tinha uma amiga que namorava com um militar, também ele daquele concelho do Pinhal Interior. A jovem, então com 17 anos, “não estava interessada em namorar”, assegura, pois era a mais velha de 13 irmãos e tinha de ajudar a família. Mas essa amiga enviou a sua morada a António que lhe escreveu, a 29 de janeiro de 1962, a pedir que fosse sua madrinha de guerra.
Tal como Luísa, as madrinhas de guerra eram quase sempre raparigas solteiras, sendo comum os soldados trocarem os endereços entre eles. Nem todos os casos acabaram em casamento mas, em muitos, as cartas explanavam declarações apaixonadas que chegaram ao altar, como foi o caso de António e Luísa, na primeira carta tratada por “Menina Maria Lieira”, nome que António havia alcançado pela letra do militar que lhe passou a morada. Luísa respondeu no dia 3 de fevereiro daquele ano, aceitando corresponder-se com António, tratando-o já por “querido afilhado”.
Naquela situação de guerra “as pessoas preocupavam-se com os jovens rapazes”, explica Luísa. Ao todo escreveria, enquanto madrinha de guerra, 235 cartas em três anos, por sua vez António escreveria 270, ainda hoje guardadas como documentos históricos, numeradas e organizadas em duas pastas, uma com as cartas dele e outra com as cartas dela, herança que vão deixar aos quatro filhos, a par das inúmeras fotografias desses tempos vividos em Angola, quer algures no mato, na guerra propriamente dita, quer depois em Luanda onde o casal viveu de 1966 até 1975.

A chegada do correio era um momento aguardado com ansiedade pelos militares que combatiam na Guerra Colonial. As cartas que recebiam de Portugal eram uma espécie de ponte de proximidade com a realidade que haviam deixado para trás, família incluída. Por isso, as missivas seguiam em missão de aconchego, em qualquer das ex-colónias onde se desenrolava o conflito como Angola, mas também Moçambique e Guiné.
Após sair da escola primária, António entrou no seminário mas ao perceber que não queria a vida de sacerdote para si acabou por optar por África. Quando a idade chegou assentou praça em Angola, uma colónia portuguesa em guerra.
“Queríamos era corresponder-nos com alguém. Arranjávamos madrinhas de guerra, quantas mais podíamos. Não receber uma carta era uma bala do inimigo, desconsolava toda a gente”, recorda António.
Na metrópole, desenvolvia-se assim a tal missão, desta feita no feminino com o objetivo de “levantar a moral das tropas”, levada a cabo por mulheres do circulo social dos soldados mas também por muitas desconhecidas que aceitaram o repto do Movimento Nacional Feminino no sentido de os animarem e encorajarem durante a comissão em África.





As cartas “eram muito frequentes, com uma frequência semanal”, e tão importantes que António contava nas ditas o número de cartas que recebia por dia. Em dias de abundância chegavam às quatro, sendo certo que chegou a ter dez madrinhas de guerra – as fotos das jovens mulheres ainda hoje estão guardadas num álbum que António preserva como um tesouro -, uma delas a saudosa Maria José Valério e outra uma artista brasileira cujo nome a memória já apagou e no álbum não resta registo fotográfico, desapareceu… mas ofereceu-lhe um fio, recorda.
No entanto, Maria Luísa foi a eleita para namorar, muito por causa do retrato, uma vez que ao fim de algumas cartas trocadas, ela em Vila de Rei e ele “algures no norte de Angola”, trocavam fotografias, como era comum entre as madrinhas de guerra e os soldados. A primeira foto trocada entre António e de Luísa foi de meio corpo.
O pelotão de António pertencia à Escola de Aplicação Militar de Angola, onde esteve quatro anos. A sua companhia o primeiro pelotão de transmissões, em Nova Lisboa (atual Huambo). “Não podíamos divulgar onde estávamos”, explica António, referindo que a carta era recebida através de um código que identificava a localização do militar, ou seja o número do Serviço Postal Militar.
O álbum de fotos de António está repleto de memórias com legendas onde consta por exemplo a fazenda Beira Baixa, milhares de vezes sobrevoada por aviões com o fornecimento de mantimentos e correio. Tal como os alimentos, o saco com os aerogramas era atirado do avião.
“O avião deitava nos terreiros onde antes da guerra se secava café, e depois íamos cercar tudo para não sermos roubados e apanhar os sacos”, refere António. E o avião, que nem aterrava, seguia viagem.

Cinco meses depois do envio de soldados para Angola, o Movimento Nacional Feminino, organização de apoio ao Estado Novo, tomou a iniciativa de colocar à venda a primeira remessa de aerogramas. Precisamente no dia 2 de agosto de 1961 e foi um êxito imediato: só nesse mês foram enviados 365 mil aerogramas, escreve Marta Martins Silva no livro ‘Madrinhas de Guerra’. Os aerogramas, nome que tinham as cartas, não precisavam de selo e eram transportados gratuitamente pelos aviões da TAP.
A vulgarização dos aerogramas facilitou muito as comunicações entre a metrópole e as tropas em África. Como se pode ler no referido livro, “eram, além de tudo, muito fáceis de utilizar pelas famílias, que não precisavam de escrever o endereço do militar a quem as missivas se destinavam – bastava que indicassem o nome e o seu número do Serviço Postal Militar, responsável por fazer chegar as cartas ao destino. Isto era possível porque cada destacamento militar tinha atribuído um número com quatro dígitos que identificava a exata localização dos soldados”.
Quando passaram a ser transportados gratuitamente pela TAP, com uma rapidez que o correio normal, com franquia, não conhecia, os números dispararam.



E do que falavam nas cartas? “Falávamos de tudo”, recorda o antigo combatente. Falavam deles, da situação da guerra, do percurso académico, faziam votos de encontrar ambos de saúde, questionavam mas não com demasiadas perguntas “para não aborrecer” ou “para não mostrar demasiada curiosidade” e adoçavam a conversa da melhor maneira que podiam.
Até que António recebeu ‘amêndoas’ num domingo de Páscoa, isto é, a carta em que Luísa aceitou namoro, em abril de 1962. Até então as cartas que chegavam a Angola de Vila de Rei terminavam com “um aperto de mão desta tua amiga muito amiga”.
Mas a jovem deixou-se encantar pela “muita lábia” do militar que romantizava a escrita até com rimas, como esta: “vai carta minha nas asas de uma pomba dizer à Luísa que depressa me responda”. Ou também dizendo que esperava cartas “com grau de ansiedade porque delas depende a minha felicidade”, ou ainda “em que não encontro palavras para explicar os meus sentimentos para contigo”.

António Catarino fala em “alegria” para explicar a importância das madrinhas de guerra para os militares que se encontravam na Guerra Colonial. “A primeira coisa que a gente fazia quando recebia as cartas era responder logo para virem outras a seguir”.
Normalmente, é à Guerra Colonial que se associa o termo ‘madrinha de guerra’, mas o nascimento desta figura feminina a quem cabia encorajar e entreter o espírito do combatente, nasceu em França, precisamente na Primeira Guerra Mundial. São deste conflito os primeiros afilhados de guerra. Em Portugal, as madrinhas de guerra foram introduzidas pela associação Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra, presidida pela condessa de Ficalho, uma organização católica e monárquica.
Nem sempre este voluntarismo era bem visto pelas famílias, designadamente quando avançava para a fase do namoro. Mas apesar do pai de Luísa não querer e a mãe ler as cartas de António primeiro que a filha, a troca de correspondência durante três anos de conflito armado acabou em final feliz com casamento por procuração.
“Teve de aceitar! Naquele tempo atingíamos a maioridade aos 21 anos”, refere Luísa, sem esquecer que “as pessoas gozavam comigo”. Como por aqueles dias era novidade no mercado “os caldos knorr e maggi diziam que era caldo de galinha sem galinha”, ou seja, “ia casar sem ter homem”.
O casal foi trocando cartas até 1965, ano em que casou. Antes da cerimónia, Maria Luísa passou os primeiros meses do ano na Suécia “com uma amiga que estava grávida e tinha um filho pequeno. O marido era médico”, recorda. A jovem viajou no início do ano e regressou no fim de setembro para casar em novembro. A um domingo, o sogro assumiu o lugar do noivo. Mas só em fevereiro de 1966 Luísa foi ter com António a Angola.
Embarcou “com passagem gratuita. Demorou três meses por causa do passaporte e das guias do Ministério do Ultramar”, justifica o marido.










Apesar de ser um desconhecido… pelo menos pela presença física, Luísa estava “convicta”. Afirma que nunca se arrependeu de aceitar. Além de ter “muita conversa, as cartas eram bem escritas e bonitas”.
António, jovem, alto, magro e de olhos azuis “era um belo borracho”, garante, aplicando uma expressão da época. Por Vila de Rei, à rapariga não faltavam pretendentes porque “nem todos os rapazes estavam na guerra. Conheci muitos. Muitos amigos dos meus irmãos, outros embarcadiços, mas gostei da fotografia dele”, explica.
Para António, Luísa também se apresentou “jeitosa”, razão pela qual colocou “as outras de lado”, ri-se. Também ele gostou da fotografia. “Ela caiu e eu caí. Caímos os dois já lá vão quase 60 anos de casamento”.
O casamento realizou-se como o mais tradicional possível, com a jovem mulher vestida de noiva, apesar de tal formalismo ser contra a sua vontade, devido à ausência do noivo, mas por pressão dos dois irmãos, de quem era muito próxima, e da madrinha, acabou por aceder. O padrinho de Luísa foi o diretor, de então, das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, em Alverca, onde trabalhava um dos irmãos de Luísa.
Guarda as memórias, e as fotos num álbum, de um dia em que não faltou (quase) ninguém, nem amigos, nem familiares, nem sequer o tradicional bolo de noiva de cinco andares, no copo de água. As fotografias revelam uma mulher feliz.



No dia do casamento António esteve a trabalhar. “Havia o Grande Prémio Palanca Negra” e preferiu ser “escalado” para o serviço enquanto polícia, “e gozar os três dias” a que tinha direito “quando a Luísa chegasse. Assim, em vez de um mês, tive um mês e três dias” de licença, recorda.
Quando se olharam pela primeira vez, já casados e em terras angolanas, o primeiro impacto “foi normal”, disse Luísa, justificando que “trocavam muitas cartas”. Além disso, recorda, “a Rádio Renascença tinha um programa que possibilitava, após marcação, falar com os militares pela rádio, através do microfone”.

Luísa não gostou de Angola quando lá chegou mas agora diz adorar África e afirma que o marido a trouxe para Portugal enganada. Se fosse mais jovem voltava para lá, até porque a mais nova dos quatro filhos vive em Angola, curiosamente a única que nasceu em Portugal. O casal esteve em Luanda até à independência, após o regresso visitou Angola duas vezes.
Além de juntar um casal enamorado, o casamento por procuração teve ainda outro objetivo: para António sair da tropa e ir para a polícia. Tendo sido o primeiro classificado entre 700 homens o comandante enviou-o para a polícia de trânsito e lá se reformou. Tinha 34 anos de idade, devido a uma doença pulmonar. A tuberculose foi também a razão que fez regressar António a Portugal, no ano da Revolução dos Cravos. “A Angola não era o melhor lugar para a cura”, explica.
Regressaram então por motivos de saúde de António, que veio e ficou em Vila de Rei durante um ano enquanto Luísa voltou a Angola. Importou também colocar os três filhos em Portugal porque “não era seguro, não havia escola, não havia pão, não havia nada”.
Por causa deles, as viagens a Portugal passaram a ser semanais. “Morávamos perto do aeroporto, ele saía da polícia e eu do escritório e vínhamos ver os filhos”, diz Luísa. Na segunda-feira regressavam ao trabalho. Confessa que nessas viagens aproveitavam para levar comida e pôr em Portugal algum dinheiro porque “às tantas cortaram as transferências bancárias. Tínhamos uma boa vida em Angola, deixámos lá uma casa e terrenos”, lamenta.










A vida militar de António no mato, durante a guerra colonial, também está documentada, desde os grandes embondeiros com troncos tão grossos que cabiam militares lá dentro, até às fotos das marmitas com a ração de combate.
“Quase todos os militares tinham uma máquina e depois íamos trocando as fotografias”, explica António. Numa dessas fotos o militar segura uma pele de jiboia que o próprio matou, esfolou e colocou a pele para curtir, depois enviou para Maria Luísa mandar fazer uma mala e uns sapatos. Nunca aconteceu a transformação.
“Depois toda a gente queria e ainda hoje as peles de duas cobras estão lá em casa. Ainda hoje não há sapatos nem mala”.
As cartas registam a primeira vez que Luísa enviou uma encomenda para António, tabaco, mas também lhe enviou uma pulseira de prata e mais tarde uma aliança de comprometido. A resposta a essa encomenda da pulseira foi a seguinte.
“Recebi a sua estimada carta bem assim como a encomenda que agradeço. A madrinha diz que é uma coisa simples mas não queira saber como fiquei invejado por alguns colegas quando me viram abrir a caixinha”.

Na época que António foi para Angola “ainda não existia nenhum prédio na Avenida Marginal em Luanda. Só a capela de Nossa Senhora da Guia”. Iniciou a trabalhar na construção do Banco de Angola como ajudante de apontador. Antes de ir para a tropa distribuía produtos de salsicharia, corria por isso Angola de lés a lés. “Conheço Angola melhor que Portugal”, afirma.
Regressaram na última ponte aérea, a 31 de outubro de 1975. Nesse pós 25 de Abril, o casal diz não ter tido “uma vida fácil” como “grande parte dos retornados”. Primeiramente foi viver para casa dos pais de Luísa, em Vila de Rei, e mais tarde para um salão da igreja da terra que “dividi com lençóis de flores para ficar mais alegre… porque não arrendavam casas a ninguém. A vida foi assim, com altos e baixos”, relembra a mulher.

António começou a vender loiças em Vila de Rei porque “não havia onde comprar um prato, nem um copo, nem uma faca”. O casal acabou por abrir uma loja na rua junto ao Mercado Diário. Mais tarde abriu um supermercado e depois meteu-se na política: António foi presidente da Junta de Freguesia de Vila de Rei durante 20 anos e Luísa foi a primeira mulher autarca do concelho. Além de assumir a secretaria da Junta, também foi vereadora da Câmara Municipal em regime de permanência de 1985 até 2002.
Sessenta e um anos passados, o dia em que trocaram a primeira carta permanece intacto na memória de António. A correspondência e os jornais – como A Bola ou o Diário de Notícias – que em Luanda eram postos à venda primeiro que no interior da metrópole, um país atrasado e rural.
“Eram os primeiros a ir para o aeroporto” e quando diariamente chegava ao trabalho, na secretaria da polícia onde desempenhou funções de arquivista, “já lá estavam!”. Recorda que nessa função abria o correio que trazia cartas que haviam saído de Portugal “há apenas dois dias”, assegura.

Outra memória do passado em África, registada em foto, é de uma menina angolana cuja mãe morreu: Isabel Batata Doce. António estava no grupo de soldados portugueses que a resgatou do mato, tomou conta dela e acabaria por trazê-la para Portugal.
Uma história contada recentemente por Ricardo J. Rodrigues em reportagem intitulada ‘Um milagre na guerra – ou as muitas vidas de Isabel Batata Doce’ publicada na Notícias Magazine e que valeu ao jornalista o Prémio Gazeta de Imprensa.
Boa Tarde, o meu Pai tambem teve na guerra em Angola nestas zonas entre 1963 e 1965. Procura colegas de Regimento e Batalhao com quem tenha estado. Podem pff informar qual o Regimento, batalhao a que pertencia o Sr Antonio pff? Agradeco desde ja