Quando eu era criança o meu quintal era a cidade inteira.
Era livre e inocente. Mas adorava a minha terra, a minha cidade, a minha Abrantes.
Tinha familiares a residir fora de Abrantes que, de vez em quando, eram por nós visitados e também eles nos visitavam com regularidade.
Eu sentia orgulho por morar em Abrantes, crescer em Abrantes, estudar em Abrantes. A minha cidade era a melhor, no meu ideário. Por vezes eu nem compreendia como conseguiam eles dizer que em Lisboa e nas grandes cidades é que se vivia bem quando eu considerava que isso era impossível, porque a minha terra tinha tudo na escala adequada e era segura, bonita, repleta de história e tradições, de pessoas que eu conhecia.
Cresci no “muro da vergonha”. E tinha orgulho por sermos centenas e de ali se forjarem amizades que ainda hoje perduram e namoricos que hoje recordo com enorme nostalgia. Não tenho vergonha de ainda saber o que foi o “muro da vergonha” que, tantos, neófitos na cidade, prontos a debitar estratégias e palpites de futuro, até mesmo a decidir o que fazer, quando fazer e como fazer, não conhecem porque não viveram e não foram tocados pela magia de Abrantes nos anos 70, 80 e 90 do século passado. Lamento mas não sabem do que escrevo e o que sinto.
Fiz parte de uma geração feliz em Abrantes. Nos escuteiros, na música, no teatro, no futebol (no hóquei), nos verões inteiros passados nas piscinas do hotel, onde o senhor Justo era um ícone e um bastião de autoridade. Fiz carrinhos de rolamentos, jogávamos à espada, às escondidas, à apanhada, ao lá-vai-alho, mimetizávamos as loucuras dos Pequenos Vagabundos, do Sandokan, do Bonanza e ficávamos horas a discutir as personagens preferidas destas e de outras séries, como o Miguel Strogoff, que víamos a preto e branco no único canal da RTP. Trocávamos livros de BD e dos “Cinco” dos “Sete” e conhecíamos de cor as suas aventuras, pela mão da Enid Blyton.
Era o tempo em que fazíamos fogueiras nas ruas pelos santos populares e em que os nossos pais montavam as cadeiras na rua nas noites quentes de Verão para conversarem entre vizinhos e sentirem orgulho na “canalhada” que brincava com incontida felicidade. As chaves de casa estavam sempre na porta e quem queria entrar batia e ia entrando. A chave só se retirava noite escura, porque havia confiança e segurança.
Era uma terra que dava emprego às pessoas e que tinha um mercado semanal que trazia centenas ou milhares de pessoas à cidade. E havia os serviços no centro da cidade. E a cidade tinha vida. E tinha flores, muitas flores. E cheirava bem. E parecia que poderia ser sempre e para sempre assim.
Hoje é o dia em que se comemoram 100 anos e em que vão ser homenageadas pessoas e instituições dos últimos 25, 30 ou 40 anos. Muitos dos que fizeram Abrantes, com mérito, nas décadas de 30, 40, 50, 60, 70 e até 80 do século passado foram esquecidos. Não serão homenageados. Desconheço os critérios mas nem os discuto.
Com pena não poderei estar nas comemorações do centenário da minha cidade. Fui mais um que a cidade viu partir. Trabalho e desafios de novas responsabilidades conduziram-me para outras paragens. Sempre que posso retorno a casa. Onde estive no passado fim de semana. Onde estarei no próximo. Vivo em Lisboa mas a minha terra e a minha casa ainda são Abrantes. E eu quero sempre acreditar que será sempre e para sempre assim. E que Abrantes ainda tem futuro e pode oferecer futuro a muitos. A mim só se for na velhice…
O meu filho mais velho, abrantino nascido há 19 anos, também já saíu da cidade e quando o questiono sobre o futuro, é perentório na assertividade: em Abrantes não e veremos se em Portugal fica.
A minha filha ainda estuda em Abrantes. A minha mãe ficou em Abrantes e de Abrantes não quer sair. A morada eterna do meu pai também é em Abrantes.
O futuro dos meus filhos não deve passar por Abrantes. Como o de muitos milhares. A terra pouco oferece aos seus filhos. E perde ligações com eles quando os vê partir.
Quando eu era criança o meu quintal era a cidade inteira. E quando percorro as suas ruas gastas e repletas de histórias por contar, por entre as paredes caiadas do velho casario, ainda me sinto criança, feliz, com a bicicleta com que o meu pai me ensinou a andar no velhinho Largo da Feira, repleto de postes de iluminação e com o piso em terra batida.
Hoje, dia dos 100 anos de cidade, estou feliz pelas memórias e triste por não poder estar presente. E mais triste ainda por sentir que 40 anos depois de o poder local democrático se ter instituído a cidade está maior, tem mais urbanizações, tem mais rotundas e praças arranjadas, mais espaços públicos e equipamentos mas, ao mesmo tempo, tem menos vida, menos pessoas, menos potencial gerador de futuros risonhos. É uma cidade divorciada das freguesias do concelho e que se alimenta dos filhos das aldeias cujos filhos, por sua vez, acabarão por sair maioritariamente da cidade e do concelho, num êxodo imparável porque o resultado das opções tomadas não mente e desmente as mentes mais esperançosas e que gostam de colorir de côr-de-rosa o que está visível a negro.
É esta a cidade do meu coração, a cidade que hoje vai homenagear justamente uns, esquecer injustamente outros e promover a galardoados também alguns que pouco fizeram e que não sabem falar de Abrantes com a emoção que sinto no meu coração. Alguns nunca o saberão fazer porque nunca sentirão a cidade da forma que eu e muitos da minha geração sentimos. Por mais que berrem ou se coloquem em bicos de pés. Podem gostar da terra mas a cidade de Abrantes que eu sinto como minha corre-me nas veias porque a relação é de sempre e para sempre. A terra dos meus avós e dos avós dos meus avós…
Tenho saudades de quando era feliz na minha terra e os meus amigos eram de todas as ruas, porque o meu quintal, o meu espaço de lazer, o meu recreio, era a cidade inteira.
Parabéns Abrantes. Espero que ainda vás a tempo de fazer muitos séculos mais. Mas é um credo pouco crente, este que escrevo, cheio de reservas e com algum ceticismo.
Abrantes, das flores dos jardins. Corriam os anos de 1955 e 1956 e estudava na velha casa onde estava instalada a Escola Comercial e Industrial, perto do Castelo. Há bastante que não a vejo mas dela sempre me lembro pois passo constantemente numa Rua na zona sul do Rio de Janeiro chamada de Marquês de Abrantes.