Luísa Vaz Oliveira e Flávio Espada, dois ex-presos políticos durante a ditadura do Estado Novo, partilharam as suas experiências na prisão de Caxias, mas também como foi viver antes do 25 de Abril de 1974. Créditos: mediotejo.net

No dia 10 de abril de 1970, agentes da Direção Geral de Segurança (DSG antiga PIDE, a polícia política) tocaram a campainha com força, duas vezes seguidas, à porta da casa dos pais de Luísa Vaz Oliveira, de 22 anos, estudante do 3º ano de Económicas no Instituto de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), em Lisboa. Mostraram o cartão e subiram rapidamente as escadas para uma busca que resultou na sua detenção e na detenção do seu irmão mais novo, aluno do ensino secundário, ao terem encontrado alguns exemplares do jornal ‘Avante!’.

A partir dessa detenção e até agosto de 1972, Luísa nunca mais viu o irmão e poucas notícias conseguiu ter dele. O rapaz tinha então 17 anos.

A prisão de oposicionistas à ditadura era uma constante, mesmo após ter chegado a designada ‘Primavera Marcelista’. Muitos dos prisioneiros eram remetidos para o Forte-prisão de Caxias, tal como aconteceu a Luísa, ao irmão, e àquele que viria a ser o seu marido dois anos depois.

No âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal recebeu a iniciativa “Conversas de Abril”, com dois ex-presos políticos. Créditos: CMS – Paulo Jorge de Sousa

No dia 23 de abril desse ano, a PIDE prendeu o então namorado e atual marido, Fernando Flávio Espada, numa cabine telefónica na rua António Serpa, junto ao Campo Pequeno (em Lisboa), onde iria fazer uma chamada clandestina. Ao mesmo tempo que uma brigada da PIDE o prendia, outra dirigiu-se a casa dos pais do também estudante de Económicas, realizando aí igualmente uma busca, sem informar os pais que tinham anteriormente prendido o filho.

Ambos foram detidos, interrogados, torturados e condenados a 20 meses de prisão por serem considerados “subversivos”, e estiveram este sábado, dia 20 de abril, no Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal, a contar a sua história no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, uma iniciativa da Direção da Organização Regional de Santarém do PCP (DORSA) e do Município de Sardoal.

Luísa Vaz Oliveira falou sobre a tortura do sono que sofreu na sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso, o isolamento em Caxias, os interrogatórios, o julgamento no Tribunal da Boa Hora que resultou em 20 meses de prisão. E Flávio contou explicou o papel do movimento estudantil na defesa da liberdade.

Naquele dia de abril, quatro anos antes da Revolução dos Cravos, Luísa e o irmão foram levados “num Mercedes para a polícia. Eu fiquei na parte feminina e ele na parte masculina. Na PIDE estávamos horas e horas, no interrogatório. As pides revezavam-se de quatro e quatro horas. De comida só me lembro de feijoada”, conta Luísa.

Porém, lembra-se bem do isolamento, do silêncio e da tortura do sono. “Era insuportável! Mesmo durante o dia era horrível. Não podíamos dormir”, diz, relembrando o “som, os barulhos feitos” para impedir o descanso dos prisioneiros. Recorda ainda “aquelas caras horrorosas” que a enfrentavam e coagiam a revelar o que sabia.

Ao fim de um interrogatório de três dias, a jovem estudante universitária foi para Caxias. “Estávamos completamente sós. Não ouvíamos nada, nem pássaros. Era a solidão completa, sem livros, sem nada para ler”. A certa altura, “farta de não ver ninguém” das grades, disse “olá” a um GNR que passava, mas calou-se de imediato com medo que a PIDE ouvisse.

No âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal recebeu a iniciativa “Conversas de Abril”, com dois ex-presos políticos. Créditos: mediotejo.net

O movimento estudantil foi um motor da democratização da universidade e da liberdade em Portugal. Como escreveu José Medeiros Ferreira “a contestação estudantil, iniciada com a proibição do Dia do Estudante, representou um tipo de ação política original na oposição à ditadura”.

“Essa ação, nem espontânea nem meramente partidária, nem legalista nem putchista, baseou-se na representatividade democrática das associações académicas e na estreita ligação das decisões tomadas pelos dirigentes no âmbito das Reuniões Inter-Associações (RIA) e a discussão alargada a todos os estudantes mobilizados, através da inovação organizacional dos plenários, tantas vezes realizados no Estádio Universitário, para além das assembleias gerais por escola”.

Flávio Espada sublinha duas questões que condicionavam a vida de todos os portugueses e em particular dos jovens; a repressão e a guerra colonial.

“Nos anos 60/70 o movimento estudantil e as associações de estudantes tinham um papel importante na defesa de um melhor ensino, em defesa da liberdade de ensino – havia uma expressão que era ‘Ensino Geral para Todos’ – das condições e qualidade desse ensino. Os estudantes tinham um papel muito ativo na defesa da liberdade, da democracia e das condições gerais do ensino”.

Nesse rememorar do que foi a ditadura do Estado Novo, defendeu que “o futuro constrói-se a partir do conhecimento que temos do passado”. As reuniões dos estudantes tinham lugar quase sempre no Instituto Superior Técnico, nas quais Luísa nunca participou.

“Nunca fui! Depois do jantar as meninas ficavam em casa… nem tal coisa me passou pela cabeça, era um dogma!… mas íamos verificando, nos períodos das aulas, o que estava ou não correto”, acrescenta referindo a existência também de jovens de movimentos de direita, “os JP, que iam marcando os outros e começava-se a notar uma grande diferença entre as pessoas. Era já tudo muito segmentado”.

No âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal recebeu a iniciativa “Conversas de Abril”, com dois ex-presos políticos. Créditos: mediotejo.net

Mas o maio de 68 e a sucessão de Salazar vieram relançar o movimento estudantil que, aliás, ficou mais solto das suas raízes associativas e universitárias que haviam marcado a fase relacionada com as celebrações do Dia do Estudante.

Luísa recorda o caso do estudante Baeta Neves, preso pela PIDE “e soubemos que lhe tinham cortado parte da língua. Quando essas informações saiam, íamos percebendo que as coisas não eram tão simples quanto nós julgávamos. Havia já um fervilhar muito grande de sensações e de opções. E pouco a pouco iam aparecendo algumas folhas soltas do Avante! que íamos lendo”, relatou.

Regra geral, a PIDE dava um tratamento mais favorável aos estudantes comparativamente ao aplicado a presos das classes trabalhadoras rural ou industrial e, muito em especial, aos funcionários do Partido Comunista Português (PCP).

Por isso, afirma que “ainda assim tivemos muita sorte” porque cerca de meio ano depois “os nossos colegas começaram a mandar-nos livros para estudar e os professores, das várias cadeiras, ao fim do ano letivo foram fazer-nos exames”. Nesse momento “éramos três na mesma cela”, indicou.

Flávio recordou um aspeto caricato da ditadura: “Uma dessas cadeiras era História das Doutrinas Económicas e a partir daí nós, que estávamos presos por um regime político fascista e por uma polícia política fascista, estávamos a receber livros do Karl Marx e por aí fora para estudar as matérias que nos proibiam de ler”.

No âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal recebeu a iniciativa “Conversas de Abril”, com dois ex-presos políticos. Créditos: CMS – Paulo Jorge de Sousa

“Benesses” da ‘Primavera Marcelista’ que jamais chegaram a muitos outros estudantes anteriormente detidos. António de Oliveira Salazar morreu a 27 de julho de 1970, quase dois anos após uma queda que lhe provocou um derrame cerebral e o afastou da presidência do Conselho, assumida por Marcello Caetano em 1968. Luísa conta que a certa altura da sua pena “ainda fui pelo menos uma vez ao serviço de saúde queixar-me que me doía as costas, o que não era mentira, na tentativa de perceber se Salazar já tinha ou não morrido”.

O marido detalha que nesses 20 meses de prisão “houve um primeiro período de isolamento e de interrogatórios e depois um segundo momento que passamos do isolamento para uma cela – pelo menos na cadeia masculina – onde estávamos 10 a 12 presos. Há coisas que já não me lembro, mas outras nem que vivesse 500 anos nunca esqueceria. Por exemplo, a primeira vez que fui metido num quarto em Caxias e oiço a porta fechar-se, o ferrolho a fechar-se do lado de fora, e sentir a incapacidade completa de ultrapassar aquela situação, isto é, de abrir a porta. É uma coisa que nunca mais esquecerei”.

Tal como ainda hoje consegue ouvir o som, ao chegar e ao partir, das carrinhas azuis escuras que transportavam os presos de Caxias para a rua António Maria Cardoso, onde estavam as instalações da PIDE/DGS, para os interrogatórios. “Toda a gente se perguntava: quem é que vai desta vez? Sou eu ou é aqui o parceiro do lado? O barulho daquelas carrinhas era uma coisa… quem passou por lá, acho que nunca vai esquecer”, considera.

Nas celas masculinas, em que o número de presos era superior ao das mulheres, havia uma grande disciplina, por isso, conta Flávio, “era fundamental que os presos dentro da cela se organizassem para gerir a sua vida. E geralmente no período da tarde cada um procurava estudar as mais variadas matérias”. Recorda um preso, da sua cela que, com a ajuda dos outros prisioneiros “conseguiu preparar-se para fazer o 5º ano do liceu”.

No âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal recebeu a iniciativa “Conversas de Abril”, com dois ex-presos políticos. Créditos: CMS – Paulo Jorge de Sousa

Apesar dos isolamento, com pancadas na parede os presos comunicavam uns com os outros.

“Havia sempre formas dos presos comunicarem entre si e com as famílias no exterior. Aquele processo de bater na parede e cada toque era uma letra, estava um bocado gasto, porque os guardas prisionais e os pides também conheciam o sistema. Era um processo primário só para coisas elementares, ninguém ia revelar um segredo batendo na parede. Mas havia processos de comunicação em que se utilizava a lavagem de roupa, introduzindo na roupa mortalhas – para fazer cigarros – escritas com uma letra fininha. Depois a roupa era lavada e estendida e por processos combinados”, a comunicação acontecia. A famosa fuga de Caxias foi discutida através de mortalhas.

“Na cadeia não havia impossíveis em termos de comunicação. Em Caxias foi possível organizar a fuga com um carro blindado”, recorda, lembrando o “camarada Tereso” como “peça fundamental” nessa fuga. Referia-se a António Alexandre Tereso, o “rachado”, nome dado no PCP aos que traíam os camaradas.

Segundo conta, José Magro, dirigente do PCP também preso em Caxias, conseguiu convencer Tereso, motorista da Carris, a fazer-se “rachado”, que “depois de muito protestar” aceitou colaborar com a polícia.

O objetivo passava por obter a confiança dos carcereiros e ter liberdade de movimentos. Na sua encenação conseguiu inclusivamente obter a confiança do diretor da cadeia, tornando-se responsável pela manutenção dos automóveis existentes em Caxias, incluindo o Chrysler utilizado na fuga.

“A imaginação não tem limites”, assegura Flávio. Com o mesmo processo, através da roupa que era lavada em casa, os presos comunicavam com as famílias.

No âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, o Centro Cultural Gil Vicente, em Sardoal recebeu a iniciativa “Conversas de Abril”, com dois ex-presos políticos. Créditos: CMS – Paulo Jorge de Sousa

Presentes na iniciativa estiveram o presidente da Câmara de Sardoal, Miguel Borges, e Júlia Amorim, em representação da PCP – Organização Regional de Santarém. Foi uma tarde de conversas sobre o que era ser jovem, ser preso e condenado por ser “subversivo” em ditadura, nas quais o público participou com diversas questões aos intervenientes.

Foram mais de 10 mil os presos políticos que passaram pela prisão de Caxias durante a ditadura do Estado Novo. Os nomes, incluindo de Flávio e Luísa, são referidos no livro ‘Cadeia de Caxias – A repressão fascista e a luta pela liberdade’ numa edição da URAP – União de Resistentes Antifascistas Portugueses, apresentado recentemente em Santarém, e que os convidados ofereceram a Miguel Borges durante a sessão.

O edil sublinhou a importância de “avivar a memória” e lamentou a não existência de “uma maior adesão dos jovens” às iniciativas com a temática do 25 de Abril.

Por seu lado, Júlia Amorim defendeu que a “dinâmica democrática” que envolve diferentes forças políticas, e não somente as no poder mas também “as forças vivas dos concelhos”, por exemplo, envolvidas na programação conjunta das celebrações do 25 de Abril, “é água que faz com que os cravos não morram”.

Exposição “50 anos do 25 de Abril – Abril é mais Futuro”. Uma mostra documental, concebida pelo Partido Comunista Português, que ficará patente até 19 de maio. Créditos: CMS – Paulo Jorge de Sousa

Seguiu-se a inauguração da exposição “50 anos do 25 de Abril – Abril é mais Futuro”. Uma mostra documental, concebida pelo Partido Comunista Português, que ficará patente até 19 de maio no Centro Cultural de Sardoal.

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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