Foto: José Martinho Gaspar

Quando a professora Júlia, mal entrámos na sala, ligou o pequeno rádio, levantámos os narizes dos cadernos, mas logo esmorecemos, porque não se ouvia música nem o programa do costume. Por vezes, a meio da manhã, escutávamos um programa infantil, onde, para além de adivinhas sobre coisas da escola, nos davam conselhos úteis. Lembro-me bem do “Toda a água para beber muito pura deve ser, e se for tirada do poço deve ferver”. Nesses momentos, fechávamos as portadas do livro de leitura e entrávamos pelas janelas que nos abria o pequeno transístor. Já à hora de almoço, enquanto devorávamos o arroz frio das marmitas de metal, a pequena telefonia da professora emitia canções românticas para ela e músicas alegres para todos, até se cansar, ficar roufenha, sem pilhas. Não percebia o milagre do aparelho que emitia vozes de onde não cabia gente, mas foi assim que me apaixonei pela rádio.

Nesse dia, ouviam-se apenas e só palavras de ordem, notícias e avisos. A jovem professora, sisuda como nunca, não ditava, não corrigia, não mandava ao quadro e, ao perceber-nos, assim, parados, boquiabertos, sugeriu-nos o recreio. Fizemos o maior intervalo de que tenho memória desde que, sete meses antes, cheguei para a primeira classe. A professora espremeu as pilhas até à última, até o rádio não dar sinais de vida e, à tarde, voltámos às somas e subtrações e ao “p e um a, pá”.

“Foi uma revolução, em Lisboa”, disseram-nos em Água das Casas, a minha aldeia, feitos os dois quilómetros de regresso, a pé, desde a Matagosinha, onde era a escola. Os influentes da Matagosa, onde existiam apenas duas crianças, tinham conseguido uma escola, enquanto na minha terra, onde havia dezoito alunos, nunca existiu sala de aulas. Víamos alguma injustiça nisto, nas molhas e no frio que apanhávamos para chegar à fonte do saber, mas, há que reconhecê-lo, as aventuras que vivíamos nas deslocações compensavam isso e muito mais. Os meus avós, com quem vivia, porque os meus pais estavam emigrados na Alemanha, pouco mais souberam acrescentar. Aqueles que apenas viviam com as mães, porque os pais trabalhavam em Lisboa, viram-nas rezar e aiar até ao anoitecer, num pranto aflitivo.

A professora Júlia, nos dias que se seguiram, foi-nos pondo ao corrente. Aquela jovem e simpática professora, com pouco mais de 20 anos, que, para espanto dos mais velhos, não usava a palmatória nem recorria às orelhas de burro, explicou-nos que os soldados, o tal MFA, se tinham revoltado para nosso bem e que, dali em diante, muita coisa iria mudar para melhor. Fingimos um ar entendido, mas aquilo da mudança não me entrava às boas. As sementeiras fazem-se na primavera, as colheitas mais no verão, poda-se em janeiro, ouvia dizer ao meu avô Vicente, e não havia volta a dar-lhe. Ainda perguntei à Celeste, a melhor aluna da terceira, que coisas novas trazia a tal revolução e ela, sempre pronta a resolver os problemas e a fazer redações com quinze linhas, embatucou e nem ai nem ui.

Mudar, mudar, naquela primavera de 74, só os temas dos nossos desenhos. Ficámos peritos a delinear tanques em posição frontal, com as poderosas lagartas quase a esmagarem quem para eles olhava e com um cravo na ponta do tubo. O Alberto, pouco dado às letras, mas perito a desenhar burros e outros animais mansos, especializou-se a encher folhas com soldados de espingardas às costas, com um proeminente cravo na ponta do cano. O cravo era rei, chegava a ser maior que as cabeças dos magalas. Ouvíamos dizer que os cravos tinham substituído os tiros das espingardas, ainda que para mim um tiro certeiro fosse sempre bem dado, pois estava garantido um belo arroz de coelho ou de perdiz. Ah, e cantávamos! Com o sol a abrilhantar-nos a pele juvenil, entoávamos, em coro, todos os dias, a cantiga da gaivota que voava, voava, asas de vento, coração de mar e subíamos de tom quando a letra nos fazia dizer que éramos um povo que cerrava fileiras, porque para serrar, a lenha para a lareira ou os madeiros na serração, era necessário encher bem o peito de ar e fazer correr a serra.

Mas onde estava a mudança da revolução? – perguntávamo-nos na altura. Quase sem darmos por ela, sei-o hoje, chegou com postes e fios de cobre que levaram a eletricidade à Matagosa e Matagosinha, mas que só quase 10 anos depois chegou a Água das Casas, apesar de, alguns anos antes, a aldeia ter prescindido das melhores terras quando subiram as águas da albufeira de Castelo do Bode.

A transformação também esteve no regresso do meu pai da Alemanha, quando encontrou emprego numa fábrica no Sardoal. Os novos tempos chegaram com o leite na escola, que, aquecido numa enorme cafeteira, nos reconfortava o estômago. E as alterações estiveram sobretudo no acesso que eu e os meus colegas tivemos ao Ciclo Preparatório, primeiro, ao Ensino Secundário e à Universidade, depois, quando até aí só os filhos de alguns mais abastados faziam tal percurso.

Para que ganhássemos asas, foi determinante a ação da professora Júlia junto dos nossos pais, a convencê-los que haveria de valer a pena tentar esse voo.

Notas:

1.            Quando alguns dos que nesse tempo faziam diariamente o caminho de Água das Casas até à escola da Matagosinha se reencontram, vem muitas vezes à baila o dever que ainda não cumprimos de homenagear a professora Júlia Honório Gaspar. Esta história do meu 25 de Abril é uma homenagem que lhe presto, assim como a todos aqueles que deram passos para que se construísse a democracia.

2.            O presente texto foi a minha resposta a um desafio da TSF, na comemoração dos 40 anos do 25 de Abril, cuja sonorização está disponível AQUI.

José Martinho Gaspar nasceu em Água das Casas (Abrantes), na década de 60 do século XX, e vive em Abrantes. É Professor de História e Mestre em História Contemporânea. Desenvolve a sua ação entre aulas, atividades associativas (Palha de Abrantes e CEHLA/Zahara, mas também CSCRD de Água das Casas), leitura e escrita, tanto de História como de ficção, sendo autor de vários artigos e livros. Apaixonado por desporto, já não vai em futebóis, mas continua a dar as suas voltas de bicicleta. Afinal, diz, "viver é como andar de bicicleta: não se pode deixar de pedalar e quando surge um cruzamento escolhe-se o nosso caminho".

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