Os agricultores procuravam os albardeiros para "aparelharem" os animais, mas a mecanização da agricultura praticamente acabou com a profissão. Elvira Martins é a última albardeira do Castelo. Créditos: mediotejo.net

O dia começa cedo para Elvira Martins. Embora não tão cedo como em tempos idos, quando viajava quatro horas em cima de uma camioneta para ir vender albardas a Elvas. “Nunca foi preciso despertador. E tantos anos andei nas feiras, mais de 30!”, recorda a mulher de 84 anos que não tem dúvidas: “sabia onde estavam todos os buracos nas estradas”.

Elvira Marques Martins, nascida e criada no Castelo (Mação), passou a juventude até amadurecer a fazer-se ao caminho da venda, “ir longe para ganhar pouco… mas era assim a nossa vida”. Dela e do marido, Isidro Esteves, artesão falecido há 14 anos.

“Eu com uma agulha eduquei três filhos”, diz orgulhosa. Afinal, desde que casou, a sua vida “foi toda feita à mão, de agulha e dedal”. E se pudesse, atualmente, “gostava de ter um burro. Arranjava uma albardinha, bem arranjadinha, para ir daqui a Mação, a cavalo no burro. Gostava muito!”, uma vez que não tem carta de condução. “Nunca quis” ser encartada, diz ela, contudo nunca lhe faltou pernas para andar nem vontade para prosseguir um caminho de trabalho árduo, numa arte praticamente desaparecida, de um passado longínquo mas “feliz”.

Foi na aldeia do Castelo que encontrámos aquela que é a última albardeira do concelho, uma mulher conversadora, bem disposta, de trato afável que segundo a própria “serve para dar sentenças” e “fazer contas”.

Confessa ter nela, uma queda para o negócio que permanece desde solteira, quando negociava presuntos. Castelo era – além de uma terra de produtores de cintas, vendidas para todo o Ribatejo e até para África – também uma terra com várias salsicharias. Elvira ainda hoje salga presuntos, de porcos criados por uma das duas filha, que vive perto. O casal teve três filhos; a outra filha está emigrada em França e o filho é psicólogo em Lisboa.

Mas no passado, a sua alma de negociante fazia com que comprasse os presuntos aos vizinhos, porque “toda a gente fazia enchidos e presuntos, mas não os comiam”. A pobreza obrigava ao consumo das carnes menos nobres do suíno, como o toucinho, colocando à venda os presuntos, para fazer algum dinheiro. Elvira tinha um comprador que os revendia, pagando uma certa quantia por cada quilograma que arranjasse. “Gosto mesmo do negócio. Adoro!”, confessa.

Os agricultores procuravam os albardeiros para “aparelharem” os animais, mas a mecanização da agricultura praticamente acabou com a profissão. Elvira Martins é a última albardeira do Castelo. Créditos: mediotejo.net

Quando casaram Isidro tinha 21 anos e Elvira mais três. Ele praticamente não sabia ler “mas já andava na arte”, conta ao nosso jornal. Porém, “o dinheiro era pouco e disse-lhe para ir tirar a terceira classe – eu só tenho a terceira, naquela tempo era assim!”, conforma-se. Prolongar os estudos, por pouco que fosse, seria o suficiente para estar habilitado a tirar a carta de condução, que possibilitava ir vender a sua arte a outras localidades.

A madrinha de Elvira era regente no Castelo e com a sua ajuda, em horário pós-laboral, Isidro concluiu a terceira classe. Mais tarde “veio a lei que obrigava a ter a quarta classe para aprender a conduzir”. E Elvira nunca aprendeu. Ainda assim, esses três anos na escola “valeu-me muito! Foi o melhor prémio que a minha mãe me deixou”, assegura.

No negócio de albardeiro, Elvira tomou, então, conta das contas. Nem precisava de papel para as compras, “memorizava tudo”. Com Isidro aprendeu a fazer albardas contudo atualmente não se opõe porque “é preciso fazer muita força” e na sua idade o trabalho resume-se praticamente a alguns biscates como fazer uns cintos em pele ou trabalhar na horta, fazer uma renda à lareira ou uma manta no tear para entreter o serão e pouco mais.

E ensinar? Ensinava se os aprendizes pagassem por esse conhecimento, porque qualquer trabalho tem de ser pago, defende. Mas alguém quer aprender? Questiona. “Já não tenho vontade de nada nem há quem queira. É um trabalho difícil, manual e obriga a investimento”. Além disso “não é possível sobreviver a vender albardas. Não há quem as compre” em volume que financeiramente compense o empenho, embora continue a haver procura de albardas para os jumentos que resistem à extinção, admite.

Na verdade, nos diplomas de artesão expostos nas paredes brancas da velha oficina, correspondentes à criação de bornil (em 1992) e da presença na Feira Mostra de Mação (em 1996) consta o nome do marido mas Elvira trabalhou sempre a sua lado; eram uma dupla. Conta a história do dia em que recebeu a visita da sogra e com ela a critica por não ser costume as mulheres trabalharem naquela arte. Sem papas na língua, como ainda hoje se caracteriza com orgulho, respondeu-lhe prontamente: “tal como os alfaiates que casam e as mulheres dedicam-se à costura juntamente com eles, fiz o mesmo!”.

Antes de formar essa equipa vencedora, para se livrar da dura labuta do campo, com dezoito anos, Isidro Esteves foi aprender o ofício de albardeiro com o mestre Agostinho, que residia em Vale de Coelho. Não tinha máquinas, todo o trabalho era desenvolvido à mão. “Uma arte que não se aprende num dia”, garante a idosa. Foram tempos de muitas viagens de bicicleta, porque apesar de pagar a aprendizagem, o mestre não oferecia guarida e Isidro pedalava quilómetros para ir dormir a casa e no dia seguinte regressar à oficina como aprendiz.

Arriscando a trabalhar por conta própria, no Castelo, Isidro e Elvira faziam de tudo: além das albardas, o bornil, a coalheira – a peça mais difícil, naquela Elvira nunca tocou -, pastas, malas, coleiras para cães, chocalhos e badalos para ovelhas e cabras, e até cabeçadas para cavalos. Vários exemplares permanecem empoeirados na oficina, aguardando um dono ou um fim que por ora desconhecem. As peles eram compradas nos Envendos.

“Naquele tempo havia muitos animais, toda a gente tinha um burrinho. O meu marido não queria que um cliente viesse à oficina perguntar por um produto que não tínhamos. Era uma grande bofetada para nós”, afirma. Assim “quando púnhamos a tenda no chão das feiras eram sempre seis a sete metros. Grande, porque trazíamos de tudo. Até sachos, ratoeiras para coelhos e armadilhas para javalis”, detalha.

Por isso, no Mação, e fora do concelho, não há quem não conheça Elvira, uma vez que, durante décadas, muitos recorreram à sua casa para comprar os “aparelhos” das bestas (burros, mulas, machos e cavalos). Só “aparelhados” os animais podiam trabalhar no campo, puxar carroças ou carregar cargas no lombo.

Entretanto, os animais foram substituídos pelas máquinas agrícolas, mas num passado, não muito longínquo, faziam parelha com o homem na ruralidade. Para a lavoura eram “aparelhados” com o bornil (ou molim) e a coalheira ou para puxar os carros. Já a albarda era colocada quando o animal carregava no lombo qualquer carga, incluindo pessoas. A cilha (correia larga que passa por baixo da barriga) e a retranca (correia que passa junto à cauda) serviam para segurar a albarda no lombo do bicho.

Conta que conheceu o marido num bailarico no Castelo. Isidro foi até lá, vindo de Carvoeiro, “a cavalo numa mula com albarda, que as selas eram para éguas e cavalos”. Como em solteiro já se apresentava com a profissão de albardeiro, Elvira recorda que um candidato a seu namorado, filho de ferrador, desdenhou do casamento com um rapaz de tal profissão, ao que a jovem respondeu: “O que importa isso? Uns calçá-las e outros vesti-las?”. A ofensa foi tal que o candidato esteve anos sem lhe dirigir palavra.

É certo que a albarda é coisa simples, embora de complexa elaboração. Os materiais utilizados cingiam-se a três ou quatro categorias: peles de animais depois de curtidas, fio, lãs e estopa (pano branco). As peles mais grossas, provenientes do gado bovino, eram utilizadas para os arreios que exigem uma maior resistência, como aqueles que seguram os animais ao carro. As peles mais finas de ovelha ou cabra eram utilizadas para debruar as albardas, dando-lhe o formato, a função e o conforto necessário. Para estas ficarem bem almofadadas, introduzia-se, no seu interior, dentro do pano branco com aplicações de pele, palha de centeio. “Se não for de centeio não presta, ficam moles”, explica Elvira.

E se nos últimos anos de vida do marido já lhe faltava as encomendas de albardas ou bornis novos ou para remendar, tempos houve que não dava mãos a medir para lá do Ribatejo, desde Elvas até ao Fundão, na Beira Baixa, procuravam os seus serviços. E claro, por cá, naquela que é hoje a sub-região do Médio Tejo e mesmo no Fratel, “onde havia muitos animais”, recorda.

O centeio tinha de ser inteiro, para maior resistência e a estopa tinha de ser da melhor, que enchia de palha, sempre a apertar para ficar rija e compacta, tornava a reforçar com pontos de fio, reforçava os cantos com couro e enfeitava com berloques de lã colorida. Isto porque as albardas, na aparência, divergiam conforme tinham uso na lavoura ou se apresentavam coloridas e vistosas para ocasiões de festa, enfeitadas com berloques de lã lembrando uma flor.

Uma albarda poderia demorar meio-dia a fazer, porém Elvira e Isidro chegaram a fazer meia dúzia por dia “mas não eram apenas 8 horas de trabalho!”, adverte a mulher. “Levantávamo-nos cedo, ele a talhá-las e eu a cosê-las, às vezes estava até às tantas. Era tudo manual exceto coser o pano” na máquina de costura Singer que ainda resiste na oficina tal como outras seis máquinas, cada uma com a sua função. “A gente suava e tornava a suar” para enfiar a agulha e dar os pontos. O casal trabalhava essencialmente por encomenda “e o meu marido, aquilo que tratava, cumpria com a palavra”. Para o final da atividade, as albardas eram vendidas a 18 contos, ou seja cerca de 80 euros.

E se todas as profissões “têm a sua ciência”, Elvira diz que apesar da força que exige, não ficava com as mãos feridas. Tinha um dedal de ferro, para a cova da mão com a qual empurrava a agulha”.

Quando faltou trabalho, a certa altura, ou quando estavam “mais apertados” de dinheiro, trabalhavam como resineiros. “Tivemos de tirar resina a mais de cinco mil pinheiros”, conta. E depois acartar os barris de resina para as fábricas. “Trabalhávamos muito para ter uma vida digna. Era sim senhora!”, garante. E foram proprietários de uma vacaria, cujo leite ordenhado a filha mais velha chegou a levar para vender em Mação. E “12 bois à manjedoura. Nunca pedi dinheiro emprestado”, revela com orgulho.

Os agricultores procuravam os albardeiros para “aparelharem” os animais, mas a mecanização da agricultura praticamente acabou com a profissão. Elvira Martins é a última albardeira do Castelo. Créditos: mediotejo.net

A sua oficina no Castelo permanece intocável, semelhante a um baú de memórias de amplas janelas para entrar a luz , uma lareira para aquecer os dias mais frios, prateleiras com artigos que ficaram por vender, os moldes a um canto, caixas com fivelas e tesouras imóveis. Porém, não há albardas que caibam num burro, mas várias em miniatura e coalheiras empoeiradas e esquecidas.

As máquinas continuam no mesmo sitio, embora silenciosas. “Depois da morte do meu marido já cá vieram pessoas para as comprar, mas não vendo nada!”, refere. Prefere recordar os tempos que em “muita gente” chegava à oficina só para observar como trabalhavam. “O nossa trabalho era reconhecido por ser bom. Era sempre bem feito. Até diziam que o albardeiro tinha ‘opinião’ naquilo que fazia. Eu nem devia dizer isto … mas quando chegávamos a uma feira, enquanto tivéssemos para vender, ninguém vendia. Tínhamos orgulho no trabalho. Em mais de 30 anos nas feiras, nunca vim para casa em branco”.

Quando as forças lhe faltarem até para cortar um cinto; máquinas, tesouras, fitas métricas, facas afiadas, rolos de pele, moldes, dedais, alicates, produtos acabados, fivelas, rebites e memórias, “fica tudo aqui. Os meus filhos que resolvam”.

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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