Há histórias sobre o 25 de Abril que, antes de serem da esfera pública, grandes feitos e atos cruciais para o que Portugal alcançou, são histórias que se ouvem em casa.

Tenho, como muitos, uma boa resposta para o já mítico “onde é que estava no 25 de Abril?!”. Mas não é exatamente minha. Enquanto crescia, ouvi muitas vezes a história – com contornos de piada e que terminava com risada geral – da aventura vivida pelos meus avós naquele dia.

Os meus avós foram de Mação para Lisboa depois de casarem. Primeiro o meu avô e, quando as coisas ficaram estáveis, a minha avó e os dois filhos pequenos. Fixaram-se na Brandoa e ali fizeram vida e viram os filhos crescer.

O meu avô ia frequentemente à terra, como quem diz uma vez por mês e, só mais tarde, quando já tinham carro, é que ia a família toda.

25 de Abril de 1974 foi um desses dias em que o meu avô tinha que ir a Mação. Fazia a viagem na sua Vespa azul, de que ainda guardo memória, era aquele modelo mais comprido, com o pneu suplente por baixo do volante, por dentro, quase entre as pernas. Saiu de madrugada, ainda escuro, para cruzar todo o Ribatejo (sem autoestradas…) e chegar cedo, para ter tempo de despachar o que tinha a fazer durante o dia.

Já o meu avô tinha saído há umas horas quando a minha avó recebeu notícia de que os filhos não tinham aulas pois passava-se algo lá para Lisboa. Seguindo a sua rotina diária, foi à mercearia e de lá trouxe o pão, arroz, um saquinho de café… e a “pior” das notícias, que partilhou com os filhos:

– Vem aí uma Revolução, há militares em todo o lado. Na Pontinha até já está um canhão apontado… Ai o vosso pai, o que lhe pode acontecer?!

Estava a minha avó nestas ânsias, os filhos também já cheios de preocupação, quando o meu avô chegava a Mação na sua Vespa azul.

Por Mação estava tudo bem. Foi ver a mãe, dar notícias de casa, dos miúdos, já tão grandes. Adivinho que se desjejuou em casa da sogra, onde havia sempre queijo fresco, ou seco, ou de azeite, fruto do trabalho e rebanho do sogro, João Lourenço.

O meu avô foi depois tratar das papeladas da casa que estava para construir, investimento de mais de 20 anos de trabalho lá na capital.

Na Brandoa, durante o dia, a minha avó, a minha mãe e o meu tio procuravam saber mais e que perigos podia o meu avô correr. Naquele dia a televisão pouco ou nada dizia, era mais a rádio, e lá foram acompanhando, quase em direto, o que se passava em Lisboa.

O dia foi de imensa aflição para a minha avó, como perceberão. Um dia longo, interminável, como são todos os dias de aflição.

Findo o dia chegavam os ecos de uma ansiada liberdade. A revolução tinha sido feita. Havia uma alegria, ainda incrédula, no ar.

Escureceu.

Fecharam-se em casa. Da casa dos meus avós na Brandoa – que ainda lá está –, a porta, ao centro, entre duas janelas, tinha uma janelinha que abriram e de onde ficaram a espreitar, mãe e filhos, o cimo da rua.

Já antes, umas horas antes de o sol se esconder, tratadas as questões que o levaram a Mação, o meu avô subiu na Vespa azul rumo a uma outra Lisboa, ainda que não o soubesse.

Nesse dia, como sempre que visitava Mação, as minhas bisavós, a sua mãe Luísa e a sogra Maria José, prepararam um cabaz que depois fixava na parte de trás da mota para levar frescura e os sabores da terra para a mesa.

Noite escura, de olhos chorosos e bem abertos, focados na portinhola da porta de casa, a minha avó e os filhos lá esperavam por notícias. E se tivesse sido apanhado nalguma barreira numa estrada? E se lhe tivessem feito mal? Falava-se nos militares de Santarém. E se? E se?

O dia inteiro de aflição culminou com a entrada de uma luz no cimo da rua. Sim, era uma mota. E lá parou frente à garagem. Era ele! O meu avô.

Já de coração sossegado, abriram a porta e viram-no desmontar a Vespa azul, desprender o cabaz cheio de frescura e sabor e saudade, e descer o quintal.

Olharam-no, não tivesse algum arranhão, e a minha avó perguntou:

– Não apanhaste a Revolução, homem?

Ao que ele respondeu:

– Qual Revolução?!

Às vezes questiono-me se o meu avô não se terá cruzado de manhã, a caminho de Mação, com a coluna militar liderada por Salgueiro Maia, que partiu, também de madrugada, em sentido contrário, da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, e marchou em direção a Lisboa, onde ocupou o Terreiro do Paço, marcando o início da queda do regime ditatorial do Estado Novo. Se passou, não reparou. Ou nunca o referiu.

O meu avô, embrenhado na ida à terra, não percebeu que a Revolução dos Cravos se desenrolava em Lisboa. Mas agradeceu-a todos os dias da sua vida, até morrer. E sempre me dizia: “A tua sorte foi já teres nascido num tempo Bom.”

Porque o 25 de Abril de 1974 continua a ser todos os dias que se lhe seguiram. Quando damos por ele, em espanto. Quando os nossos filhos o estudam e entendem pela primeira vez.

Sempre que a sua história for recontada, reforçada, perpetuada. Sempre que o vivemos, hoje já quase sem darmos por isso. Uma normalidade.

Na verdade, o 25 de Abril de 1974 mudou a vida dos meus avós que, um ano e quatro meses depois, regressaram definitivamente a Mação. Portugal já estava a mudar.

Havia muita confusão, muita indefinição – relembra a minha mãe quando lhe volto a pedir esta história – ainda nem se percebia muito bem os direitos que se podiam ter, alguns achavam que tinham direito a tudo, mas o ar que se respirava já era outro.

O medo, bafiento, ia desaparecendo, arejado, porque se abriu ali a Porta da Liberdade. Que não a deixemos fechar nunca mais!

Nasceu em Mação em 1978. Estudou em Abrantes, Lisboa, Bruxelas e voltou a Mação. Licenciada em Sociologia, trabalhou sempre na área da Comunicação, primeiro a social, depois a autárquica.
Resgatar memórias e dar-lhes uma quase eternidade é o seu exercício preferido. Considera que a recolha de memórias passadas das gentes de Mação e o apoio na construção das memórias futuras dos quatro filhos é a melhor definição de equilíbrio, o presente da vida. Acredita, acima de tudo, que nada sabemos de ninguém até ter uma boa, mas mesmo boa, conversa. Porque o que parece, às vezes, não é.

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