O abutre-do-egipto é uma das espécies ameaçadas que este ano não nidificou no Gavião. Fotografia: José Freitas

O biólogo Carlos Pacheco, especialista em aves necrófagas, criticou “a construção de passadiços prejudiciais” ao ambiente, como parece ser o da recentemente inaugurada Rota da Sirga na margem esquerda do Tejo, no concelho de Gavião, por “perturbar” a nidificação dos grifos e o abutre-do-egipto, uma vez que, segundo afirmou ao nosso jornal, desapareceram sinais de qualquer nidificação nos 22 ninhos de uma colónia de grifos ali existente, com três núcleos, e noutro de um casal de abrute-do-egipto – espécie ainda mais rara nestas paragens, pois só nidifica em zonas inóspitas e tranquilas.

A perda de habitat e a falta de alimentos colocaram o abutre-do-egipto à beira da extinção nos anos 1970/80. Com os grifos a história é um pouco mais feliz, porque desde essa data “têm regressado e vindo a recolonizar algumas áreas, como é o caso de Gavião”, explica Carlos Pacheco, enumerando outros locais onde existem colónias importantes, como Vila Velha de Rodão, serra de Penha Garcia, Portas de Vale Mourão e Zimbreira.

Carlos Pacheco, que trabalhou para o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF) e desde os anos 1990 acompanha no terreno essas aves, conta ter visto em 2014 pela primeira vez um casal de grifos em Gavião. Desde então, “a colónia foi aumentando”, com uma tendência de crescimento positivo.

Em 2018, ano em que se realizou o último Censo nacional, o número de casais que efetivamente nidificaram no concelho, nas escarpas do rio Tejo, era de 22 (ninhos), ou seja, “a unidade reprodutora”, número do qual se excluem os indivíduos existentes mas que não acasalam, explica o biólogo, que atualmente é investigador na Universidade do Porto.

Grifos nas escarpas do Tejo. Fotografia: José Freitas

Foi igualmente nesse ano que garante ter visto pela primeira vez um casal de abutre-do-egipto, espécie que havia desaparecido daquele local. “Houve umas aparições na Zimbreira, mas não de um casal reprodutor”.

Esta espécie ter-se-á extinguido, como nidificante, de todas as montanhas do Noroeste peninsular no primeiro quartel do século XX, em resultado das campanhas de envenenamento destinadas ao controlo do lobo e das grandes aves de rapina. Sendo uma espécie necrófaga, é-lhe reconhecida, por parte das populações rurais, a função de limpeza dos campos, não sendo habitualmente perseguida por agricultores ou caçadores.

Quanto aos grifos, o biólogo assegura terem-se reproduzido nas escarpas que ladeiam o Tejo em Gavião nos anos 2019, 2020 e 2021. Este ano “não houve reprodução por causa dos passadiços, devido à proximidade excessiva” com o ser humano. Ainda mais grave, considera, é “o desaparecimento o casal de abutre-do-egipto”.

Para Carlos Pacheco, os responsáveis pelo projeto da Rota da Sirga “não têm a mínima noção do ambiente necessário para a reprodução” desta espécie. “Os locais de nidificação são críticos. Há animais que voam até 200 quilómetros para se alimentar.”

Inauguração do PR8 em Belver, designado Rota da Sirga. Créditos: CMG

O grifo é uma das maiores aves de rapina da Europa, com cerca de 2 metros de envergadura e 6 a 8 kg de peso. Pertence ao grupo dos abutres – aves exclusivamente necrófagas, que se alimentam de cadáveres.

Na Península Ibérica encontramos o maior núcleo mundial da espécie, com 30.946 casais em Espanha e cerca de 1.000 casais em Portugal (dados de 2018). No nosso país a espécie tem vindo a aumentar continuamente nas últimas três décadas, seguindo a tendência da “macro-população” espanhola.

Apesar do aumento substancial em número, a espécie manteve-se, até 2020, praticamente confinada à faixa raiana, nomeadamente aos vales alcantilados do Douro Internacional e vales dos rios Côa e Sabor, Tejo Internacional e Serra de São Mamede.

Para Carlos Pacheco, os responsáveis pelo projeto da Rota da Sirga “não têm a mínima noção do ambiente necessário para a reprodução” desta espécie: “500 metros à volta dos locais de nidificação é o valor mínimo onde não deve ocorrer perturbação”.

O biólogo, que não se manifesta contra os investimentos de lazer, critica, no entanto, que a pressão turística, e as respetivas infraestruturas, sem qualquer tipo de parecer ou estudo de impacte ambiental, alheia à fauna existente, “inviabilize” a reprodução das aves que têm naquele local “as boas escarpas” que necessitam para a nidificação. “O fator limitante destas espécies é o habitat de nidificação”, insiste.

Inauguração do PR8, na margem esquerda do Tejo, traçado na União de Freguesias de Gavião e Atalaia, e designado Rota da Sirga. Fotografia: mediotejo.net

Como solução, uma vez que a Rota não foi desenhada na margem direita do rio, sugere que o percurso seja redesenhado com circulação por cima da encosta ou que se interdite em cerca de um quilómetro, uma vez que “500 metros à volta dos locais de nidificação é o valor mínimo onde não deve ocorrer perturbação”.

Carlos Pacheco considera que, desta forma, “pode acontecer que os grifos voltem a reocupar” os seus ninhos – “mas duvido que os números voltem aos de 2018 ou 2019”.

O biólogo defende, por isso, que o ICNF deve atuar neste caso, tendo em conta que não está a ser salvaguardada a lei de proteção e conservação da natureza que prevê o conjunto das medidas necessárias para manter ou restabelecer os habitats naturais e as populações de espécies da flora e fauna selvagens num estado favorável.

Os locais de nidificação para os grifos são cada vez mais escassos. “Há animais que voam até 200 quilómetros para se alimentar”, diz o biólogo Carlos Pacheco. Fotografia: José Freitas

Fora das áreas classificadas e protegidas em termos ambientais, a construção de infraestruturas turísticas, como os passadiços, não carece de autorização, avaliação ou sequer de estudo de impacte ambiental.

Outros casos sucedem-se pelo País com muitos outros passadiços, percursos pedestres e até pistas de escalada em escarpas com ninhos de grifos, como aconteceu em Vale Mourão. O biólogo assegura, no entanto, que a região Centro é a mais problemática: “Há uma degradação enorme dos habitats naturais e vai-se expandindo. No Alentejo menos, porque há mais propriedade privada. E as autoridades públicas, que deveriam ser incisivas, contra o Estado não são. Temos organismos públicos a passar por cima de tudo, sem salvaguardar minimamente valores que são potencial turístico”, critica.

O biólogo Carlos Pacheco assegura que a região Centro é neste momento a mais problemática: “Há uma degradação enorme dos habitats naturais. Temos organismos públicos a passar por cima de tudo, sem salvaguardar minimamente valores que são potencial turístico”, critica.

Contudo, a Justiça já decidiu a favor da natureza. Carlos Pacheco recorda o caso ocorrido em Portas de Rodão aquando do melhoramento da linha ferroviária, que “teve como consequência o abandono de uma grande quantidade de ninhos”. A Refer, diz, “perdeu em tribunal e naquele caso houve uma recuperação das colónias de grifos”.

O mediotejo.net sabe que o caso agora ocorrido no Gavião já é do conhecimento do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas e segue os devidos trâmites. No entanto, o mediotejo.net enviou um conjunto de questões ao ICNF, mas até ao momento não obteve resposta. Note-se que, em casos de violação da lei que protege a biodiversidade, através da conservação e do restabelecimento dos habitats naturais e da flora e fauna selvagens em território nacional, qualquer cidadão pode avançar com uma queixa judicial.

Observatório de Avifauna do Outeiro, no Gavião, construído com o propósito de observar os grifos em voo. Fotografia: Jorge Santiago/mediotejo.net

Carlos Pacheco, que presentemente é investigador da Universidade do Porto, refere que para o ICNF, além do trabalho nas áreas classificadas e protegidas, realizou uma cartografia das zonas de interesse, ou seja, zonas de proteção de salvaguarda, muito por causa das atividades quer turísticas quer florestais, como a construção de caminhos e aceiros, e justamente para proteger a fauna que não se encontrava nas áreas classificadas.

“Por exemplo, o Tejo Internacional alberga 22 casais de cegonha preta, mas a zona Centro tem mais de 40 casais, o que significa que metade está fora da zona protegida”, nota.

Considera que tal defesa de zonas de interesse “nunca chegou a ser implementada” como deveria ser. “Em Portugal trabalha-se mal estas matérias. Esta nova atividade não teve em conta a sensibilidade destas espécies naquele local. À autarquia bastava consultar o ICNF, é uma entidade do Estado, mas pelo que vejo não há consulta. Há empresas que têm esse cuidado e no caso do Estado, têm a sua independência e fazem como entendem. É o que interpreto.”

A cegonha-negra é uma das espécies mais ameaçadas na região. Fotografia: José Freitas

Também as cegonhas pretas, outrora, já se instalaram nas escarpas do Tejo em Gavião. Agora mais afastadas, embora na zona, preferem a ribeira de Alferreireira, segundo disse ao nosso jornal o presidente da Câmara Municipal de Gavião.

José Pio garante que a questão da preservação da fauna e da flora “foi acautelada” pela equipa projetista da Rota da Sirga. Por isso, a escolha do percurso e os passadiços passarem por baixo dos ninhos dos grifos.

“O ninho mais baixo está a trinta metros” do local de passagem, refere o presidente ao nosso jornal – contudo, como já referido, o biólogo Carlos Pacheco considera que 500 metros é a distância mínima necessária para não haver perturbação.

Quanto ao casal de abutre-do-egipto, diz “desconhecer” a situação, mas quanto aos grifos, garante que “estão lá instalados e cada vez são mais”. Em seu entender, “onde há alimentação ficam, e naquele local há alimentação”.

Passadiços do Alamal, na Praia Fluvial do Alamal, em Gavião. Fotografia: Jorge Santiago/mediotejo.net

Esclarece ainda que, antes de construir a infraestrutura, o município “não pediu qualquer parecer, nem solicitou um estudo de impacte ambiental, porque não é obrigatório”, e vinca que “a questão da preservação da colónia de grifos foi acautelada pela equipa projetista”. Aliás, garante, “o percurso poderia ter sido feito por cima, até ficava mais barato, mas passava pelo meio da colónia, e isso não fazia sentido”.

José Pio declara não ter conhecimento de qualquer denúncia ou queixa relativamente à Rota da Sirga junto do ICNF, mas assegura que a Câmara está disponível “para alterar e resolver algum problema que venha a ser identificado no futuro”. Contudo, diz que para já “não parece que [a situação] seja relevante”.

A sua formação é jurídica mas, por sorte, o jornalismo caiu-lhe no colo há mais de 20 anos e nunca mais o largou. É normal ser do contra, talvez também por isso tenha um caminho feito ao contrário: iniciação no nacional, quem sabe terminar no regional. Começou na rádio TSF, depois passou para o Diário de Notícias, uma década mais tarde apostou na economia de Macau como ponte de Portugal para a China. Após uma vida inteira na capital, regressou em 2015 a Abrantes. Gosta de viver no campo, quer para a filha a qualidade de vida da ruralidade e se for possível dedicar-se a contar histórias.

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9 Comentários

  1. Infelizmente, esta é a realidade nos dias de hoje. Destroem a natureza para mostrar a natureza, talvez apreciem naturezas mortas. Cortam extensas áreas de árvores que convertem em passadiços, que pesadas máquinas instalam nos locais inacessíveis. É um paradoxo! Perturbam e destroem a natureza em nome do turismo sustentável, das energias limpas e do desenvolvimento. Assim vamos destruindo o pouco que resta do mundo.

  2. Honra seja feita à jornalista do mediotejo.net que teve a coragem de escrever este artigo, bem completo diga-se, escassos dias depois de ter escrito um outro de divulgação da inauguração dos passadiços. Parabéns Paula Mourato pelo bom jornalismo que desenvolve.

  3. A Icn,Qual a sua razão de existir (Além dos “Tachos”),se não conseguir sequer antecipadamente perceber os Prós e Contras?

  4. É mais do mesmo,infelizmente a maioria dos responsáveis numa grande parte dos organismos passam a maior parte do tempo fechados em gabinetes,não teem sequer uma pequena noção do que defendem ou não e nem teem a decência nem a humildade de se informarem com quem entende das coisas e depois é só disparates,estamos na Era dos inteligentes(Toda a gente sabe tudo incluindo eu)!Assim vai o mundo👍

  5. O ridículo desta situação é a ausência do mais básico bom senso por parte dos decisores isto para não aplicar ignorância. Na margem contrária do Tejo foi feito um observatório de aves, investimento feito por duas vezes, pois após o original em 2018 tudo ardeu num incêndio. Em 2019 o turismo de portugal investiu aqui mais de 200.000 na recuperação do espaço pois na margem oposta existia uma colónia de Grifos e também 2 espécies ameaçadas, o Abutre-do-Egipto e a Cegonha-preta.

    Pasmem-se quando no início deste ano a câmara do Gavião inaugura um passadiço da moda exactamente na margem onde estas espécies nidificavam.

    Como costumo dizer o ridículo não tem limites e a estupidez também não.

    Urge acabar com a moda da gamificação do território. Termo inglês que vem do gamming mas que na realidade se traduz em gamar os espaços naturais para uns parolos urbanos virem tirar fotos para o Instagram e com sorte deixar uns trocos na economia local.

    Mas o problema maior dos passadiços da moda chegará daqui a 8 ou 10 anos quando as madeiras por falta de manutenção, por norma nunca prevista nestes investimentos duvidosos apodrecer tornando-se assim numa ameaça para os potenciais utilizadores do espaço.

    As aves parece já terem desaparecido e o passadiço um dia será uma miragem de tempos idos. Como diz uma amiga: há demasiado dinheiro nas câmaras pois de outra forma não o gastavam de forma efémera.

    https://vimeo.com/414346824

  6. Já tinha mencionado que fica horrível quando colocaram passadiços em penedo furado . Não aprendem a manter o mais natural possível . Existe outras soluções , podiam por exemplo criar passagens com pedra , é certo que ficam obrigados a percursos mais longos, mas é preferível manter a naturalidade da área .

  7. Grande artigo…passadiços, pontes para entrar no Guinness como a do Paiva, uma enormidade de cimento vista a 100km dali, baloiços, portas.
    A negociata das CM e das empresas de madeiras. A moda do turismo de instagram.

  8. Suponho que os comentadeiros acima sejam pessoas bem instaladas lá para os lados da capital. Todas estas infraestruturas, algumas com defeitos é certo, servem para trazer pessoas e desenvolver a província, ou seja é paisagem que se vê de Lisboa, já de si muito desertificada de pessoas e bichos.

    1. Supõe mal, no meu caso. Confunde-se. Eu não ponho em causa o passadiço, mas sim a parte do percurso que afeta a colónia dos grifos. Sou um acérrimo defensor do desenvolvimento local assentes em estratégias “bottom-up”, ações pensadas de “baixo para cima” e não impostas de “cima para baixo (“top-down”), como são muitas das decisões centralizadas a partir do “terreiro do paço” e quantas vezes desfasadas da realidade do território. Acontece que este investimento não é nada disso, revela-se contraproducente e contraditório, em que se verifica que os investimentos não passam de ações avulsas, onde não se vislumbra nenhuma estratégia, porque as ações não se interligam entre si, muito pelo contrário (veja-se a contradição explicada no comentário do Paulo Jorge Margalho).
      O que este artigo evidencia, no contraditório da jornalista feito à CM do Gavião, é um presidente autoritário, em que assume que a decisão tomada do alto do seu cargo não é questionável pela sociedade civil, e ao querer justificar-se, mostrando que também é uma autoridade na matéria, ridiculariza-se, pois confunde as distâncias de sensibilidade à perturbação da colónia dos grifos com um qualquer galinheiro com perus! Assim como ficou bastante evidente que a decisão deste projeto nunca teve qualquer aconselhamento com especialistas na matéria. Errar é humano não ter a humildade para reconhecer o erro é estupidez.

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