Depois das últimas casas da aldeia, escassos metros depois da ponte do Porto Largo, mesmo à beirinha do caminho que segue para a Saramaga, houve em tempos uma cerejeira. Era muito alta e frondosa e todos os anos dava cerejas gordas e brilhantes, de um vermelho carmim de encher o olho, só o olho, a barriga raras vezes.
Os melros eram quase sempre os primeiros a descobri-las, e a prová-las, apesar dos espantalhos que então povoavam aquele vale, muitos, quase tantos como a gente de verdade remendando as contas da mercearia nas hortas da Amarela.
Já nós, que não tínhamos asas, só pernas e braços e destreza para subir até aos ramos mais altos, chegávamos sempre depois, alertados pela revoada de pássaros, os grandes malandros, a zombar da rapaziada pequena.
Em querendo também podíamos contornar a aldeia e seguir pelas levadas das Varas até às hortas das Barroqueiras, onde duas outras imponentes cerejeiras davam fruto suficiente para nos livrar do pecado da cobiça, mas ó coisa sem graça subir a uma árvore a convite do dono.
Certas vezes, muito raramente, o assalto corria bem à primeira. Mais arriscado do que chegar lá acima, encher a barriga rapidamente e descer ainda com o regaço cheio, era ser denunciado aos verdadeiros donos da cerejeira – e saber que eles cobrariam a colheita.
Mesmo sendo pecado de pouca monta, o medo era gigante, assombrando-nos as noites seguintes com sonhos de sovas e castigos. Escapei sempre a ambos, já posso dizê-lo agora, defunta que é a cerejeira, menos ao peso na consciência e às penitências ditadas pelo Pe. Aníbal, três avé-marias e três pai-nossos, vai em paz e não voltes a pecar, sim? Sim, senhor padre.
Tentei saber que morte teve, mas na aldeia ninguém se lembra, e não achei boa ideia perguntar aos donos. Inquietei-me ao pensar que a levara o lume, disseram-me que não e eu fiquei feliz por saber isso. Ouvi dizer que as cerejeiras não vivem muito e talvez ela já fosse velha quando eu nasci.
Consola-me saber que o seu desaparecimento foi obra do tempo e que o tempo foi generoso com ela, ao contrário do que acontece com a sua flor, a famosa sakura, frágil e efémera, sempre a lembrar-nos que o tempo é o nosso bem mais precioso.
Certa estava Mandy Kirby quando escreveu no seu A Victorian Flower Dictionary que se deve aproveitar o momento, celebrar a sua chegada e aceitar a sua passagem sem lamentações. Parece fácil, mas é mais difícil do que aprender onde devemos colocar os pés quando se sobe a uma árvore.
As flores de cerejeira ensinam-nos a viver o presente sem medo, a tirar partido do agora, a mostrar-nos que devemos fazer com que ele valha a pena, independentemente do que passou e do que virá. A fugacidade das suas pétalas, que a qualquer momento podem ser levadas pelo vento, é uma das mais belas imagens do esplendor e fragilidade da existência humana.
Viver o presente é aceitar que a vida é transitória e não é perfeita, e que mesmo assim pode ser bela nas suas imperfeições, é arriscar subir às árvores e descobrir nelas ramos novos, pernadas inteiras grávidas de luz e promessas. É fazer o hoje valer a pena, porque o tempo gasto no que nos faz sentir vivos nunca será um desperdício.
Quanto a mim, sou sempre mais feliz debaixo de uma qualquer cerejeira.