A pandemia de covid-19, mais do que cheias, incêndios ou outro tipo de ocorrências, marcaram os últimos dois anos de exercício do presidente da Comissão Distrital de Proteção Civil. Na hora da despedida do cargo que assumiu em março de 2019, Miguel Borges faz um balanço da atividade da Comissão não escondendo os momentos que passou de muita dor, lágrimas e sofrimento, tendo-lhe ficado gravada na retina a identificação de espaços que pudessem albergar cadáveres em grande escala.
“Sofrimento, grande tensão, lágrimas, muita dor”. São alguns dos adjetivos que Miguel Borges, presidente da Comissão Distrital de Proteção Civil, e também presidente da Câmara Municipal de Sardoal, encontra para descrever alguns dos momentos vividos nos últimos dois anos devido à pandemia. “Houve necessidade de encontrarmos locais onde pudéssemos ter um número significativo de cadáveres, porque as casas mortuárias não seriam suficientes, esses foram os momentos de maior dureza, os momentos em que fizemos o planeamento, em que tínhamos os locais e tudo sinalizado, construir este plano para cadáveres em grande escala, pensar que isto podia acontecer…”
ÁUDIO | MIGUEL BORGES, PRESIDENTE PROTEÇÃO CIVIL DISTRITAL SANTARÉM:
Em cada distrito existe uma comissão distrital de proteção civil, à qual compete acompanhar as políticas diretamente ligadas ao sistema de proteção civil que sejam desenvolvidas por agentes públicos e determinar o acionamento dos planos, quando tal se justifique. O nome de Miguel Borges foi indicado pela Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo (CIMT) para substituir no cargo a socialista Maria do Céu Antunes, que tomou posse em 2019 como secretária de Estado do Desenvolvimento Regional (hoje é ministra da Agricultura). Com Miguel Borges, autarca eleito pelo PSD, integram ainda a Comissão os presidentes da Câmara Municipal de Almeirim, Pedro Ribeiro, e da Câmara Municipal de Santarém, Ricardo Gonçalves, ambos da Comunidade Intermunicipal da Lezíria do Tejo, a par do comandante operacional distrital, as entidades máximas, ou seus representantes qualificados, dos serviços desconcentrados dos vários ministérios, os responsáveis pelas forças e serviços de segurança existentes no distrito, um representante do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e um representante da Liga dos Bombeiros Portugueses e um representante da Associação Nacional dos Bombeiros Profissionais.
mediotejo.net – É o fim de um ciclo… três anos, qual o balanço deste ciclo de trabalho?
Miguel Borges – Foram três anos e importa realçar que 21 meses destes três anos, foi com pandemia. Um trabalho para o qual ninguém estava preparado, nenhuma entidade, nenhum comissário estava preparado, e todos nós tivemos de fazer um trabalho de articulação, um trabalho diário durante meses, reunimos diariamente, um trabalho de muita dureza, dedicação, empenho, de sofrimento também e muita dor. Foram principalmente estes últimos 21 meses que me vão ficar marcados, não só pela minha passagem pela comissão distrital da proteção civil, mas também pela minha vida profissional e pessoal, porque realmente houve momentos inimagináveis, de grande tensão, de lágrimas até, porque sofremos muito, todos nós sentados ao computador nos briefings diários, foram momentos muito, muito difíceis. Momentos que passámos juntos, o dia de Páscoa, a sexta-feira Santa, o 1 de maio, o 25 de abril, passámos juntos alguns dos nossos aniversários que a pandemia nos retirou também da família, dos nossos amigos, mas sempre com o propósito do bem-comum e realmente é de destacar a dedicação que todos os conselheiros e comissários da proteção distrital tiveram, e vão continuar a ter nesta comissão, a par das diferentes entidades que a integram.
A mim coube-me a tarefa de convocar gerir e dirigir as reuniões, juntamente com o comandante distrital operacional de proteção civil, e tentar fazer o melhor possível. Tentar, às vezes, também desanuviar alguns momentos de tensão, alguns momentos mais difíceis, mas é assim, era um trabalho que ninguém estava à espera, nunca estaria à espera, nem eu nem ninguém, que a história fizesse com que nós pertencêssemos e fizéssemos parte desta mesma história que vai ficar marcada na história da nossa vida coletiva e aquilo que foi também o empenho e dedicação de todos nós à causa pública.
Pegou na pandemia como o mais marcante deste ciclo de trabalho. A Comissão existe para proteção civil a vários níveis, não só de saúde pública…
Sim, a vários níveis, antes da pandemia, a visibilidade da Proteção Civil era maior, e continua a ser claro, naquilo que são os incêndios florestais, as cheias, as ondas de calor, todo o que é proteção de pessoas e bens passa pela comissão distrital de Proteção Civil. Porque a comissão distrital é um conjunto de parceiros, desde os centros hospitalares, as forças da GNR, da PSP, do SEF, da Segurança Social, dos ACES, três presidentes de Câmara – um da região do Médio Tejo, que era o meu caso, e dois da Lezíria – mas também a Direção Geral da Agricultura, ou seja, todos os parceiros tiveram sempre uma palavra a dizer, também o Instituto de Medicina Legal, onde passámos momentos muito difíceis planeando aquilo que podia ser uma situação terrível como a que estávamos a ver que se tinha passado em Itália, situações dramáticas e o Instituto de Medicina Legal teve um papel muito importante e mesmo assim, apesar de tudo e felizmente, nunca foi posto em prática, pelo menos aquilo que podia ser uma quantidade exagerada de cadáveres, que pudesse haver uma intervenção em grande escala, sendo certo que aqueles que tivemos foram muitos, muitos. Nós tivemos dias, no nosso país, com o equivalente àquilo que era o equivalente à queda de um avião, um Boeing, com 200-300 mortos diários, e tudo isso estava a passar.
Mas é verdade que a Proteção Civil tem também um papel muito importante naquilo que é a prevenção. Prevenção daquilo que são os incêndios, que são os problemas aqui da nossa região. E a nossa região tem, por exemplo, as suas unidades militares, tem fábricas com alguma perigosidade, a ferrovia como é o caso do Entroncamento, tem os rios para o caso das cheias, tem as barragens, tudo isto são situações em que o importante é que a Proteção Civil não intervenha mas esteja prevenida e que faça simulacros e toda a preparação de homens e mulheres que pertencem a toda esta estrutura de proteção civil para que se o azar nos bater à porta noutras situações, a intervenção possa ser feita. Agora a importância dos eixos rodoviários que temos aqui na nossa zona são tudo trabalhos que estão na Proteção Civil e que tem de ter sempre em atenção.

Cessa por vontade própria, o que é que se segue, o que o levou sair…
Eu fui apanhado de surpresa como membro da Comissão Distrital da Proteção Civil. Quem presidia era a minha colega presidente da Câmara de Abrantes, Maria do Céu, entretanto como foi para secretária de Estado, fiquei eu por decisão unânime dos meus colegas – porque já era eu que a substituía – fiquei eu como presidente da Comissão Distrital. Agora, eu entendo, e isso foi sempre aquilo que ultimamente defendi com a experiência que tive, é claro sem querer fugir ao lugar, apesar da dureza, mas entendo que para um bom funcionamento, até pela descentralização de competências e com uma presença e responsabilidades muito maiores para as Comunidades Intermunicipais, foi meu entendimento e transmiti isso aos meus colegas que era muito mais prático e eficaz que se os presidentes das Comunidades Intermunicipais, neste caso a minha colega Anabela Freitas, devia ser ela uma das possíveis presidentes da Comissão Distrital de Proteção Civil. Não sei se seria essa a intenção ou não dos meus colegas, mas o que é certo é que no dia em que esta decisão foi tomada na Comunidade Intermunicipal foi unânime o reconhecimento que fizeram e que agradeço muito e a paciência também que tiveram sobre o trabalho desenvolvido, que era minha responsabilidade e minha obrigação, muitas vezes à custa de muitas horas, mas é assim, às vezes quando desempenhamos estes cargos tudo isto nos pode acontecer e temos de dizer “presente” com toda a alma e coração e com toda a vontade.
Já houve oportunidade para um balanço ou para despedidas também?
Não, foi uma reunião pacífica, de acordo com o que se está a passar, e infelizmente eu estou a ver a história a repetir-se, porque há um ano e pouco – há um ano não, porque há um ano foi quando estive doente com covid com alguma gravidade e há um ano ainda estava na situação de doença – mas em outubro/novembro do ano passado eram estas as preocupações que hoje estamos a ter e que hoje por exemplo a senhora ministra da Saúde transmitiu, eram as preocupações que tínhamos, que os números pudessem crescer como cresceram, é claro que temos um dado novo este ano que não tínhamos há um ano, que se chama vacina, e é um dado muito bom, muito importante e é importante que as pessoas se vacinem, porque realmente é uma forma de combater este vírus. Mas não chega, ou seja, é importante que as pessoas continuem a proteger-se, e mantendo tudo aquilo que são as recomendações, o distanciamento social, o uso da máscara, etiqueta respiratória, e agora com a atratividade que tem e os desafios que tem o Natal e o Ano Novo, é ainda mais importante que as pessoas possam reforçar estes procedimentos para que este não seja o último Natal das nossas vidas.
Pergunto-lhe, como é que no terreno trabalha de forma ágil, muitas vezes tem de tomar decisões que muitas vezes não são fáceis de tomar, como é agilizar toda esta estrutura, como foi o processo, que leitura tem ao dia de hoje?
O agilizar de toda esta estrutura não foi uma tarefa complicada pela excelente qualidade e colaboração de todos os elementos que fazem parte da comissão distrital, mas às vezes há momentos também de maior tensão. O trabalho do presidente da comissão distrital não se esgota no final da reunião com os parceiros. Às vezes é preciso pegar no telefone, fazer pontes, gerir alguns pequenos conflitos ou desentendimentos que houve durante a reunião, facilitar e tentar que hajam pessoas que possam tentar ter um papel mais ativo nesta situação pandémica, naquilo que muitas vezes é termos que dar e receber daquilo que são as nossas responsabilidades nas nossas instituições e isto foi o meu trabalho de fazer estas pontes, de gerir alguns conflitos onde eu próprio também participei e tive também de fazer algum de autocontrolo e era este o papel do presidente. Mas temos uma excelente comissão distrital de proteção civil, fomos inovadores, tivemos à frente de muitas situações, naquilo que foram as nossas propostas, naquilo que foi o nosso empenho, nós demos muitas sugestões aos membros do Governo, neste caso ao secretário de Estado, Duarte Cordeiro, que foi um excelente parceiro em tudo isto, a articulação que tivemos com ele foi excelente, foi alguém que sempre me atendeu o telefone, sempre ouviu as minhas sugestões e da comissão distrital, assim como o senhor Comandante regional, numa primeira fase o comandante Mário Silvestre, houve sempre uma excelente articulação, onde conversámos, falámos, trabalhámos horas e horas seguidas.

Algum momento que mais o tenha marcado?
Sem dúvida, aqueles momentos mais difíceis em abril, maio, abril, aqueles momentos mais difíceis em que tivemos de pensar que aquilo que podia aí vir era precisamente o caos, um caos ainda maior do que o que tínhamos, e que tivemos de fazer toda aquela programação e preparação de situações e arranjar espaços onde se pudesse fazer mortuária em grande escala. Termos isto tudo planeado, perceber o que cada um podia disponibilizar, as características, foram momentos muito difíceis. Estou a falar há um ano, logo no princípio, depois da pandemia começar, talvez abril-maio 2020, em que víamos o que se passava em Itália, Brasil ou Estados Unidos, e houve necessidade de encontrarmos locais onde pudéssemos ter um número significativo de cadáveres, porque as casas mortuárias não seriam suficientes, esses foram os momentos de maior dureza, os momentos em que fizemos o planeamento, em que tínhamos os locais e tudo sinalizado, construir este plano para cadáveres em grande escala, pensar que isto podia acontecer, pensar que isto felizmente apesar de tudo, nunca fomos tão longe, nunca foi tão longe, mas pensar que isto podia acontecer a qualquer momento e a qualquer um de nós…
Desta experiência sai com certeza mais rico e experiente..?
Sem dúvida. E se já tinha um enorme respeito e reconhecimento, saiu com um respeito ainda maior e um reconhecimento ainda maior por todas estas pessoas que dirigem diversas entidades de grande responsabilidade e onde nem sempre têm os meios suficientes para fazer o trabalho que gostavam de fazer. Nós sabemos que somos um país com parcos recursos, mas a capacidade de dirigir, que tivemos de instalar uma unidade em Fátima, onde veio gente de vários pontos do nosso país, especialmente da região centro, uma estrutura onde puderam ser alojados na covid. A rápida capacidade de resolver problemas em lares, instituições, todos nós rapidamente ou com rapidez possível, mas sempre com grande sucesso, resolvemos esses problemas que nos apareciam, por exemplo nos lares, onde realmente havia pessoas com maior fragilidade.
Que desafios se levantam… há situações que ficaram por resolver, nomeadamente a instalação do comando sub-regional da proteção civil no Médio Tejo. Sai sem conseguir deixar esse espaço definido?
Não, essa questão nunca passou pela Comissão Distrital de Proteção Civil, essa é uma decisão política, dos decisores políticos, e nunca foi pedido, pelo menos enquanto estive na Comissão, que nos pronunciássemos sobre este assunto. É uma decisão a nível governamental. Para já as notícias que surgiram de o Comando sub-regional ir para Sertã, houve uma esmagadora maioria dos colegas presidentes de Câmara que não concordámos, muito pelo contrário, porque era um deslocar para uma região onde na verdade há pinhal, mas se percebermos aquilo que é a perigosidade de região… por exemplo um dos concelhos onde este comando poderia ficar seria em Vila Nova da Barquinha, pela proximidade que tem à ferrovia, à A1, ao Tejo, ao Castelo do Bode, a muitas unidades militares e fabris, nós entendíamos que havia aqui esta centralidade que poderia e deve ser benéfica para instalar esta estrutura. É claro que também sabemos que hoje esta estrutura funciona muito com novos meios de comunicação, à distância, mas também sabemos que quando estes não funcionam – como aconteceu recentemente com a história do SIRESP – não há nada como o contacto pessoal, a proximidade, e o deslocarmos rapidamente, por isso foi nosso entendimento, da esmagadora maioria dos presidentes de Câmara, aliás arrisco-me a dizer a totalidade do Médio Tejo, claro que não era concordante connosco o presidente da Câmara da Sertã, mas o importante perceber é como é que estão a tratar estas questões da proteção civil.
Estas coisas, a meu ver, têm de ser tratadas com um grande rigor técnico. A política aqui serve quando está ao serviço do que é o rigor técnico, e isto é fundamental. Primeiro a análise, a avaliação técnica, a avaliação do melhor local – e há outra questão que não referi, Vila Nova da Barquinha tem a base aérea de Tancos, tudo levaria a crer que tinha todas as condições para esta estrutura, mas a Comissão Distrital não foi tida nem achada, soubemos das notícias pela comunicação social, claro que pusemo-nos ao caminho para contrariar a situação e conseguimos e julgo que neste momento esta decisão está suspensa. Não digo que não irá para qualquer um destes municípios do Médio Tejo, mas o que digo é que neste momento é uma decisão que está suspensa. A última informação que tenho é que há suspensão dessa decisão para já.
E para a maioria dos autarcas do Médio Tejo a sugestão é Vila Nova da Barquinha?
Eu falo por mim. Foi o primeiro local que apareceu, foi a primeira proposta que surgiu. O colega de Vila Nova da Barquinha teve o cuidado de falar comigo como presidente da Comissão Distrital de Proteção Civil perguntando o que eu achava e eu concordei absolutamente, com as instalações que ele cedia, com a localização e sei que ali seria excelente. O que não quer dizer que a nossa região domine todas estas respostas e que não haja outras boas opções, mas concordei logo à partida e sei que era uma boa opção e uma boa aposta para a região.

Numa leitura para a frente… que desafios se levantam para os próximos tempos?
Realmente a continuação deste problema que temos que é a covid, e a grande incógnita que temos em gerir toda esta pandemia, uma incógnita que também está associada a hoje ser uma coisa e amanhã já ser outra. E às vezes é difícil também comunicar às pessoas como é que numa semana as regras são umas, depois passado uma semana já são outras, no dia seguinte são outras, e não é fácil. Não é fácil ter processos de vacinação em massa como temos tido, não é fácil ter os processos de testagem em massa como temos tido, não é fácil termos respostas no âmbito do Serviço Nacional de Saúde em grande escala como tivemos, portanto, o grande desafio é precisamente aprendermos todos os dias, continuarmos a ajudar as pessoas e instituições como tem sido sempre feito até aqui, com a nossa reflexão, com a reflexão entre parceiros de grande responsabilidade, e depois também não nos esquecermos que este ano houve alguma tolerância em termos de incêndios, mas não sabemos como vai ser no próximo ano. E 2017 não foi tão longe assim como tudo isso. E a pergunta que deixo no ar é se aprendemos com todos os erros cometidos em 2017… Não sei, com alguns sim, outros não. Por outro lado, neste momento, estão a haver grandes mudanças na própria paisagem, nas áreas de intervenção para a paisagem, há muita legislação, há financiamento, para tudo isto que é prevenção para que a proteção civil não necessite de ter uma intervenção como tem tido. Vamos trabalhar na prevenção, na formação, na educação, para que não tenhamos de ter uma atividade tão forte e necessária como tivemos.